Fugindo de Putin, russas escolhem Florianópolis para dar à luz

Mulheres russas deixam o país de origem para terem seus bebês longe da guerra e da repressão política

Anastasia Andreeva sofreu violência obstétrica em seus dois primeiros partos, há 14 e há 10 anos, mas, quando engravidou pela terceira vez, em 2020, decidiu que não teria o bebê em Tyumen, na Rússia, onde vivia com a família.

Sem falar uma frase em português, veio para o Brasil, mais especificamente para Florianópolis, um mês antes de dar à luz a Evelyn, a primeira brasileira da família.

Maria Blagushina também teve os dois primeiros filhos em Moscou, na Rússia, e o mais novo no Brasil, há sete meses, e decidiu se mudar para a capital catarinense em razão da guerra motivada pela invasão da Rússia à Ucrânia:

“Minha cidade não está sendo bombardeada, mas é terrível ver que pessoas apoiam essa situação no meu país. Meus amigos e familiares correm o risco de ir para o exército e morrer. Por isso, quando me separei, decidi fugir para longe de toda essa situação”.

Histórias como a de Anastasia e Maria não são isoladas em Florianópolis. A cidade é referência em parto humanizado e domiciliar no Brasil; além disso, o país tem leis migratórias bastante flexíveis, garantindo cidadania brasileira a todos os bebês nascidos aqui e residência às suas famílias, que também têm a cidadania facilitada.

Por essa e outras razões, Florianópolis tem recebido cada vez mais russas ou mulheres de outros países do Leste Europeu, como Sérvia e Ucrânia, que atravessam o Atlântico nas últimas semanas de gestação com o desejo de parir filhos brasileiros.

Embora a guerra entre Rússia e Ucrânia, que já ultrapassa um ano, tenha aumentado a frequência de grávidas russas chegando à América do Sul– mais de 5 mil entraram na Argentina nos últimos meses, 33 delas em um único voo em fevereiro, segundo autoridades do país – esse fluxo já dura pelo menos cinco anos.

Algumas vêm com a intenção de fixar residência, como Anastasia e Maria, mas há mulheres que passam por aqui apenas pelo tempo necessário para ter seus filhos e garantir o passaporte do Mercosul para a família.

De acordo com a Secretaria de Saúde de Santa Catarina, no ano passado 34 russas tiveram seus partos em hospitais do estado, quase três por mês – mas esse número cresce muito considerando as mulheres que optam por ter seus bebês em casa, com a ajuda de uma equipe de parto domiciliar, que são comuns em Florianópolis.

Anastasia Andreeva e os filhos — Foto: Lucy Hallak

Mayra Calvette, enfermeira obstetra e neonatal que trabalha com a equipe Ama Nascer, calcula que os partos de mulheres dessa nacionalidade triplicaram de um ano para cá: “Hoje, nossa equipe faz pelo menos um parto domiciliar de russa por mês. Às vezes mais”, conta. Uma das repórteres que assina essa reportagem, Gabriela Borges, vive em Florianópolis e deu à luz Lila há dois meses – dos 43 pais e mães presentes do grupo de pós-parto que participa, 7 são mulheres russas.

Outra prova de que o turismo de parto Leste Europeu-Santa Catarina está aquecido é o surgimento de todo um mercado em torno dele: empresas de viagens especializadas em trazer grávidas desta região para parir no Brasil e tradutoras que facilitam a comunicação com hospitais, médicos e doulas, inclusive na hora do parto, e ajudam com o que mais as famílias precisam por aqui.

É o caso de Anastasia Andreeva, cuja história abre este texto: depois de ter seu bebê, decidiu se instalar no Brasil trabalhando como doula e tradutora, ajudando conterrâneas a encontrar moradia, tirar o CPF, solicitar a residência, fazer os últimos exames do pré-natal e até a cuidar das crianças depois de nascida, indo com as famílias em busca de médicos e escolas.

“Meus dois primeiros partos aconteceram em hospitais na Rússia, foram violentos, mas o terceiro foi em casa, aqui no Brasil, com respeito. Fui feliz com essa decisão, foi a melhor experiência dos meus partos. Agora, ajudo mulheres a sentir, como eu, que é possível parir com acolhimento e amor.”

Uma dessas empresas, a Brazil Mama, afirma no site que “a medicina no Brasil é gratuita para estrangeiros” e que “98% das clientes consideram o nível de assistência ao parto no Brasil muito melhor do que em seus países de origem”.

As clientes podem optar por pacotes de serviço que vão de um mais simples, que inclui cadastro de CPF e inscrição no SUS, registro de linhas telefônicas, tradução dos documentos, ajuda no registro da certidão de nascimento e na emissão do passaporte do além da autorização de residência para pais, a um mais sofisticado, que inclui, além dos serviços citados, assistência burocrática antes da viagem, dicas para fazer as malas, motorista e tradutor à disposição da família, curso de língua portuguesa e sessão de fotos da família, carrinho e trocador para o bebê.

A empresa oferece, ainda, serviços à parte como assistência na compra e venda de carros ou imóveis, aulas de surf e excursões dentro do Brasil, para cidades como Rio de Janeiro, Foz do Iguaçu e Gramado. Não é possível consultar os preços dos pacotes diretamente no site, mas mulheres que entrevistamos afirmam ter gasto US$ 4 mil (mais de R$ 20 mil) por serviços como recepção, ajuda na busca por moradia e com a documentação na chegada ao país.

Desde que decidiram ter um filho, Yulia* e o marido sabiam que a criança nasceria em outro país, como forma de fugir da repressão política na Rússia e oferecer um futuro melhor ao bebê. Eles não conheciam ninguém no Brasil; as pessoas mais próximas em termos geográficos são amigos que vivem em Buenos Aires – a vantagem da Argentina para as famílias russas é que, em comparação com o Brasil, é um país mais barato e mais europeu –, mas conta que decidiu vir a Florianópolis depois de conhecer uma surfista que teve filho na cidade.

O casal passou um mês no Brasil em 2021, conhecendo melhor Florianópolis, e se encantaram com a natureza, a comida e as pessoas: “Elas se cumprimentam na rua, oferecem ajuda, são mais alegres, menos estressadas”. Voltaram um ano depois, aos 5 meses de gestação.

Como Anastasia e Maria, Yulia decidiu fixar residência na capital catarinense com o marido e a filha Beatriz*, de 3 meses. “Minha família está triste por não conhecer a Beatriz. E também lamentaram o nome dela ser brasileiro e não russo, mas eu quero que ela seja brasileira”. E completa: “Desejo liberdade para a minha filha. O passaporte brasileiro é um presente que dou a ela”.

De portas abertas

Embora o fluxo de mulheres do leste europeu viajando para parir no Brasil chame a atenção de alguns anos para cá, o turismo de parto como estratégia para aumentar as oportunidades de deslocamento internacional, acontece há anos e no mundo inteiro, inclusive entre brasileiras, afirma a advogada Ana Cláudia Ruy Cardia, professora de Direito Internacional na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Basta pensar em mulheres que gastam milhares de reais para ter seus filhos nos Estados Unidos, como a cantora Claudia Leitte e a atriz Karina Bacchi, e garantir que tenham passaporte e cidadania norte-americanos.

As russas seguem a mesma lógica, ela explica, porque países como Brasil, Estados Unidos e Argentina, por exemplo, firmam suas leis de cidadania sobre o princípio de ius solis, isto é, consideram nacionais todos aqueles que nascem em seu território, independente da nacionalidade de seus pais ou da família ter residência fixa no país.

Há, portanto, pelo menos dois fatores ligados a questões migratórias que tornam o Brasil um lugar atrativo para as grávidas russas. Primeiro, diferente dos Estados Unidos, o Brasil tem um olhar amigável a países de diferentes ideologias e mantém as portas abertas para todas as nacionalidades; além disso, tem um passaporte que funciona como passe livre em quase o dobro de países do que o passaporte russo.

Segundo, de acordo com a Lei de Migração de 2017, mães e pais estrangeiros que têm filhos em território brasileiro conseguem acelerar o processo de também se tornarem cidadãos brasileiros; enquanto para a maioria das pessoas só é possível ter um passaporte do Mercosul após cinco anos de residência no Brasil, para quem tem filhos naturais do país esse tempo cai para apenas um ano.

“O Brasil tem ótimo status migratório e burocracia simples para a naturalização de estrangeiros, por isso, funciona como trampolim para ir para os Estados Unidos, Canadá e para a União Europeia”, resume a advogada, especialista em Direito Internacional. Esse foi o principal motivo que trouxe Anastasia Andreeva, em 2020, e Yulia, em 2022, grávidas, para o Brasil. Yulia conta: “Com este passaporte a gente pode morar e trabalhar no Brasil, meu país amado. E também podemos viajar sem visto para a América Latina, a Ásia e a Europa, que agora está fechada para os russos. Também queremos que a nossa filha, Beatriz, possa escolher onde viver”.

O contexto de guerra, repressão política e alistamento obrigatório também empurram essas famílias para a decisão de ter seus bebês fora da Rússia — um segundo passaporte pode evitar que essas crianças, na vida adulta, sejam enviadas para conflitos armados. Anastasia Andreeva conta que muitas das gestantes russas que atende vêm para o Brasil fugindo das políticas de Putin.

Yulia diz que teve suas contas bancárias bloqueadas pelo governo Putin, assim como muitos outros russos que vivem fora do país, e usa bitcoins para transferir e sacar dinheiro no Brasil. Diz, também, que muitos de seus amigos estão deixando o país com medo especialmente da perseguição a pessoas LGBTQIA+.

Ao chegar aqui no ano passado, essa mesma mulher se emocionou com as eleições presidenciais que elegeram Lula: “Nunca um candidato em quem votei foi eleito, porque lá as eleições são fraudadas. Me emocionei ao ver como as pessoas têm o direito de votar e escolher o presidente de forma pacífica”, mesmo em meio à polarização política. E explica por que preferiu não se identificar nesta reportagem, que optou por usar um nome fictício: “Na Rússia, não podemos protestar nas ruas de jeito nenhum que somos presos. Para você ter uma ideia, no meu país sou proibida de falar muitas das coisas que estou falando nessa entrevista”.

* O nome foi trocado a pedido da entrevistada

 

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