Aos 17 anos, no começo da década de 1960, Helô Pinheiro costumava cruzar as ruas de Ipanema com duas finalidades. Uma era se dirigir ao ponto de ônibus, no qual embarcava, vestida de uniforme escolar, para estudar no colégio estadual Júlia Kubitschek, no Centro, onde se formou professora primária. Outra era a caminho do mar, revelando-se uma verdadeira adepta da frase do escritor Gilberto Amado — “Desconfio de quem podendo, não vai à praia”. Helô saía da rua onde morava, a então Montenegro, hoje Vinicius de Moraes, e seguia até a Visconde de Pirajá para buscar uma amiga. Nesse ir e vir, usava biquínis de pano ou de tecido atoalhado, confeccionados pela avó materna, Maria do Carmo.
A calcinha era um pouco abaixo do umbigo; o sutiã tinha formato meia-taça. Por cima, usava uma camisa amarrada com calça Saint Tropez. No percurso, era comum, ao passar na frente do Bar Veloso, ouvir assobios. “Falavam ‘Oh, bonitinha’, ‘Psiu, psiu’, brincavam. Quando olhava e via que era comigo, eu me empinava. Não tinha noção de que, entre eles, estavam Vinicius de Moraes e Tom Jobim”, lembra. Foi graças a esse despretensioso itinerário que nasceu, em 1962, a lendária canção “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinicius.
Na última sexta-feira, a adolescente que inspirou a música mais gravada da História do Brasil completou 80 anos. Para comemorar, repetiu o memorável trajeto para as fotos desta reportagem, realizadas às vésperas do seu aniversário.
Na entrevista feita na área externa de seu apartamento térreo, em Ipanema, Helô revisita a trajetória, recorda-se de passagens ao lado de Tom Jobim e Roberto Carlos, fala sobre o casamento de 57 anos com o engenheiro Fernando Mendes Pinheiro, sexo, etarismo e passagem do tempo. Confessa frustrações e imagina o que teria acontecido se o enredo da sua vida fosse tramado em dias de internet e redes sociais: “Estaria milionária”. Confira os melhores trechos do bate-papo a seguir.
É verdade que o Tom Jobim te pediu em casamento no ano em que “Garota de Ipanema” foi composta?
Tom era meio brincalhão, tinha aquela coisa sensual do olhar. Um dia, ele me disse no banco da praia: “Fiz uma música para você”. Eu fazia ginástica artística na beira d’água e sempre tinha um homem sentado, de longe, me olhando. Depois, me dei conta de que era o Tom, fiquei sabendo que ele ia à praia para me ver. Até que num final da tarde, ele falou assim: “Você não quer se casar comigo?”. Eu, naquela época, já estava noiva. Ele, por sua vez, era casado (com Thereza Hermanny), mas estava triste. Aí, eu disparei: “Sou virgem”. O que tinha a ver uma coisa com a outra? Na minha cabeça, cheguei a pensar que ele queria só uma transa e precisei frisar que era uma “menina séria”, meu medo talvez tenha sido esse… Não rolou nada, nem beijo. Achava o Tom lindo, mas não tinha química.
O que mudou na sua vida quando, em 1965, Vinicius revelou à revista Manchete que você tinha inspirado a célebre música, recém-estourada na voz de Astrud Gilberto?
De primeira, não mudou muita coisa. Lembro-me de chegar em casa e aquele monte de fotógrafos me esperando, me pedindo para colocar um biquíni para ser fotografada na praia. Era superinibida, fiquei assustada. Porém, naquela época, nada era globalizado. Andar na passarela da rua provocou um boom, mas um boom meio fechado. Estou colhendo mais frutos nos dias de hoje.
Você se casou virgem, em 1966, com o Fernando, e segue junto dele até hoje, 57 anos depois. Ressente-se de não ter vivido outras experiências?
Acho que sim. Dei essa liberdade para as minhas filhas. É interessante ver se a tal química funciona. Por acaso, dei sorte. Como não tive outro (homem), também não sei se foi tão bom (risos). Sempre fomos monogâmicos, meu marido é muito católico, nosso casamento foi na Candelária, a igreja lotada. Depois, segui as transformações comportamentais que vieram apenas na moda, usava roupas de estilo hippie. Porém, já estava casada. Claro que, em alguns momentos, pensei em desbundar. Porém, fui obediente às regras, não transgredi. Gostaria de ter aproveitado mais a vida, ter experimentado outros homens antes de me casar, ter sido um pouco Leila Diniz.
Qual espaço o sexo ocupou na sua vida à medida que você foi amadurecendo?
A gente deixou de lado, de uns tempos para cá. Somos companheiros, Fernando é maravilhoso, mas não temos mais isso. Abdiquei. Faço reposição hormonal, mas não sinto falta.
Nem vibrador?
Não, nunca usei…
Olhando em retrospecto, acha que os assobios e as gracinhas de Tom e Vinicius, atualmente, poderiam ser considerados assédio?
Acho que não, eram frases carinhosas, brincadeiras, eles nunca foram ao meu encalço.
O que aconteceu entre você e o Roberto Carlos?
Foi nos anos 1970, já era casada, e meu marido sabe disso. Peguei um avião, com a babá e a Kiki, ainda bebê, de SP para o Rio. Roberto sentou-se do meu lado. Ele me ofereceu carona, quis ser gentil. Ao entrar no carro, peguei de dentro da minha bolsa uma fita cassete com as suas músicas e coloquei no toca-fitas. Ele ficou impressionado, viu que eu era fã dele. Na hora de ir embora, me deu um selinho (risos).

E com a Rainha Elizabeth II?
Fomos convidados, eu e meu marido, por meio do cônsul, para um chá, mas não fomos. Estávamos em lua de mel. No fundo, tive medo, não sabia que roupa usar, me sentia insegura com o inglês. Pedi desculpas.
Ouvi dizer que você ficou chateada com o desfile de Gisele Bündchen, na abertura das Olimpíadas do Rio, no Maracanã, ao som de “Garota de Ipanema”.
Sim, fiquei sentida. O lugar não era dela. Aquela passarela me doeu. O que custava eu estar numa ponta e Gisele na outra? Será que o etarismo tomou conta da história?
Nos anos 1990, você foi impedida pelo escritório da família do Tom e do Vinicius de usar o nome “Garota de Ipanema” na sua loja de beachwear, em São Paulo. O que aconteceu?
Montei uma butique e coloquei o nome da música. Um dia, chegou a notificação. O Tom já tinha morrido, ele jamais deixaria isso acontecer. Tentei falar com a Ana (a fotógrafa Ana Beatriz Lontra Jobim, viúva do compositor), mas não consegui. Coloquei advogados, e o processo correu. Hoje tenho o direito de usar Helô Pinheiro by Garota de Ipanema, no segmento moda. Não precisava disso, não sou mercenária. Não deitei sobre as notas musicais, fui sempre batalhadora.
Você tem quatro filhos: três mulheres, Kiki, Jô e Ticiane, e o caçula, Fernando. aos 15 dias, ele teve falta de oxigenação no cérebro. O que ocorreu?
Fui gravar um comercial e pedi para o meu marido ficar com o bebê, mas ele saiu. Fernandinho teve bronquiolite e demorou a ser levado para o hospital. A parte cognitiva ficou bem alterada, mas poderia ter sido pior. Culpei o meu marido, ficamos praticamente seis anos sem nos tocarmos. Com o tempo, refleti muito sobre o assunto e perdoei. Fernando é um homem bom, jamais quis fazer mal ao filho. Foi uma fatalidade, mas custei a digerir.
Sua neta Rafaella, filha da Ticiane e do Roberto Justus, nasceu com estenose crânio-facial. Como lidou com isso?
Ainda muito bebê, Rafa foi para os Estados Unidos e passou por uma cirurgia superdelicada. Não saí de perto dela nem da Tici. No Brasil, foi submetida a outra operação. Hoje, aos 13, é uma menina inteligente, fala um inglês fabuloso, faz sucesso na internet, tem talento e milhares de seguidores.
Como encara a passagem do tempo?
Já vivi mais do que tenho para viver. A morte me assusta. Minha maior preocupação é o meu filho, hoje com 41 anos. O dia em que eu faltar, a Tici cuidará dele.
Como seria a Garota de Ipanema em 2023?
Riquíssima. E teria viajado o mundo inteiro.
Beleza: Paula Cardoso. Set design: Macarena Roca e Paulo Salim. Assistência de fotografia: Flávia Paulo e Daniel Mastalir. Produção executiva: Kariny Grativol.
Com informações do Jornal O GLOBO.