Discurso ‘tororó-Rouanet’ tenta criar divisão entre artistas do ‘agro’ e da ‘elite’, analisa professor

Falas de sertanejos no palco tentam separar gente que trabalha na roça de pessoas que não entendem esse trabalho, como Anitta e artistas que usam Rouanet

O caminho que começa no discurso de Zé Neto contra Anitta e a Lei Rouanet passa pela reação dos fãs da cantora nas redes e resulta na polêmica sobre shows sertanejos pagos por prefeituras já foi desvendado.

Mas uma dúvida fica no ar: o que a tatuagem no “tororó” de Anitta tem a ver com a Rouanet? Como Zé Neto juntou as duas coisas na fala em cima do palco?

A ligação “tororó-Rouanet” parece aleatória. Mas há um fator que dá sentido à conexão. Ele aparece na própria fala que detonou a polêmica, no show seguinte de Zé Neto & Cristiano e em um discurso do locutor Cuiabano em uma apresentação de Gusttavo Lima.

As três declarações exaltam o trabalho das pessoas simples no interior. Elas opõem o sertanejo, que estaria do lado desse esforço, e as pessoas que, supostamente, não conhecem e não entendem essa labuta.

Nesse contexto, tanto fazer uma tatuagem no “tororó” para aparecer quanto ganhar dinheiro da Lei Rouanet seriam atalhos para artistas que não entendem o valor do trabalho, na visão dos sertanejos.

Zé Neto disse que ia “rezar” para pessoas como Anitta “entrarem em um curral” e aprenderem que o leite não vem da caixinha, mas da vaca.

O cantor Zé Neto e o locutor de rodeios Cuiabano Lima. Os dois fizeram discursos no meio da polêmica sobre os shows sertanejos de prefeituras — Foto: Érico Andrade / G1

Ataques à Rouanet

A contradição entre as críticas à Lei Rouanet e os shows com altos cachês de prefeituras sem licitação (inclusive aquele em que Zé Neto fez o primeiro discurso, pelo qual ele ganhou R$ 400 mil) geraram críticas nas redes e, depois, investigações do Ministério Público.

A demonização da Lei Rouanet faz parte de uma série de ataques à cultura nos últimos anos no Brasil, diz ao g1 Miguel Jost, pesquisador de música e políticas públicas, professor da PUC-Rio.

“A cultura brasileira sempre foi um espaço onde as pessoas se encontram, que une os brasileiros. E ela passa a ser atacada justamente por isso. É muito triste ver isso acontecendo”, ele diz.

“Dentro desse conjunto de ataques ao setor cultural, há uma tentativa de colocar um determinado grupo de artistas como se fosse ‘uma elite despreocupada, que não quer saber da verdadeira realidade e dos desafios que a população brasileira enfrenta no dia a dia”, ele analisa.

Ele deixa claro que considera que esta é uma falsa divisão. “Isso é mentira. A gente tem, na verdade, um setor cultural diverso, híbrido, que vem demonstrando ao longo dos tempos um grande compromisso com a realidade brasileira.”

A novidade é esses ataques serem feitos por pessoas que são artistas. Os sertanejos que tentam se ligar a esse trabalho simples no “agro” buscam se separar dos outros: “Eles têm tentado colocar uma diferença entre eles e esse grupo que pertenceria a essa ‘elite'”, diz Miguel.

Altos cachês e oração para Anitta entrar em um curral

A fala de Zé Neto que detonou a polêmica sobre os altos cachês de prefeituras aconteceu no dia 12 de maio em Sorriso (MT). A cidade é conhecida como a “capital nacional do agronegócio”, e a maior produtora de soja do país.

Todo mundo já ouviu as frases dele sobre Anitta e Rouanet. Mas logo antes das críticas, Zé Neto diz: “Sorriso, Mato Grosso, um dos estados que sustentou o Brasil durante a pandemia”.

No show seguinte, em Dourados (MT), no dia 19 de maio, ele disse que ia “rezar” para que pessoas como Anitta “calcem uma botina e entrem num curral” e ia “rezar” para ela “entender” aquilo.

Zé Neto diz que ela deve aprender que “o leite que você compra na caixinha não vem bonitinho da caixinha, alguém tirou”.

No dia 21 de maio, Gusttavo Lima cantou em Brasília. Ele já estava no centro da polêmica sobre os shows de prefeituras. O locutor Cuiabano Lima introduziu Gusttavo.

Cuiabano disse, em um discurso exaltado, que “o que o sertanejo tem de melhor” é “a simplicidade”, “levantar cedo dormir tarde” e “acordar e pedir bênção para o pai e para a mãe”.

O locutor de rodeios veterano também disse que “a gente tem que conquistar essa p*”, exaltou “o Brasil do trabalho” e citou “Deus, pátria e família”, lema do presidente Jair Bolsonaro, antes de falar mais palavrões.

Anitta é alvo de vais de fãs de Zé Neto — Foto: Reprodução

Veja abaixo os três discursos:

1 – Zé Neto em Sorriso (MT), no dia 12 de maio: “Sorriso, Mato Grosso, um dos estados que sustentou o Brasil durante a pandemia. Nós somos artistas que não dependemos de Lei Rouanet, o nosso cachê quem paga é o povo, a gente não precisa fazer tatuagem no toba para mostrar se a gente está bem ou não, a gente simplesmente vem aqui e canta, e o Brasil inteiro canta com a gente”.

2 – Zé Neto em Dourados (MS), no dia 19 de maio:“Gente, não precisa (vaiar a Anitta). Vamos rezar por essas pessoas e que Deus abra a mente delas e que elas entendam. Que venha um dia, um dia só na vida, calce uma botina amarela, entre num curral cheio de b*sta para separar o gado, tirar um leite, passar peia num bezerro. E ver que a vaca não dá leite, você tem que ir lá tirar. O leite que você compra na caixinha não vem bonitinho da caixinha, alguém tirou”.

3 – Cuiabano na abertura do show de Gusttavo Lima em 21 de maio, já com o cantor no centro da polêmica:”E a gente tem que conquistar essa porr* porque o Brasil é nosso, porr*. É o Brasil do trabalho, da conquista. O que o sertanejo tem de melhor? Nós temos aquilo que o brasileiro gosta que é a simplicidade, que é o jeito de conversar, de tomar uma, levantar cedo dormir tarde, acordar, pedir bênção pro pai ou pra mãe. Isso é a verdade que a gente tem que acreditar. Porque aqui nunca vai ser o comunismo, e sim uma democracia”.

Palcos exaltados e redes pacifistas

Depois destes discursos em seus shows, tanto Zé Neto quanto Gusttavo Lima fizeram declarações mais amenas nas redes sociais.

Gusttavo Lima disse que estava “a ponto de jogar a toalha”, que “não compactua com dinheiro público” e que “é um cara que nem fala de política mais”.

Zé Neto disse: “Nunca a nossa intenção foi incitar o ódio. A gente se expressou de uma maneira porque quis mostrar o lado de quem vive do agro, de quem vive da roça. Estou atrás de paz”.

As informações são do g1.

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