Aglomerados em praças ou espalhados pelas ruas do Centro de São Paulo, dependentes químicos que frequentam ou vivem na cracolândia estão submetidos a um rigoroso código de conduta estabelecido pelo crime organizado, com regras e penalidades para quem as desobedece.
Em nome do lucro, nos moldes do controle que exerce em presídios e comunidades, a principal facção do país tem uma estrutura conhecida como tribunal do crime dentro do fluxo que julga, condena e castiga — desde uma surra que resulte em deficiência física permanente até a morte.
— Quando a cracolândia estava na Praça do Cachimbo, o tribunal ficava no meio do fluxo, no Hotel Avaré, e tinha uma estrutura conhecida como açougue. Chegamos a prender um indivíduo que tinha a função de dobrar os cadáveres e colocá-los em pacotes, para serem descartados no Rio Tietê — afirmou um delegado que atuou na região. — Hoje o tribunal funciona dentro de uma favelinha no Centro. Já o açougue não sabemos se voltou.
A dinâmica está detalhada em relatórios de inteligência da Operação Caronte —que foi às ruas entre junho de 2021 e dezembro passado —, obtidos pelo GLOBO. Com o mote do combate ao crime organizado, a operação foi bastante criticada pela truculência e por ter dispersado os usuários. Nas últimas semanas, moradores e comerciantes da região têm protestado contra a falta de segurança. O próprio delegado admite que o tráfico se reestruturou e, desde março, voltou “com força”.
Funções claras
O código penal próprio da facção prevê punições específicas. Quem desobedece é chamado para o “debate”, uma sessão de julgamento. Pequenos furtos de droga, por exemplo, resultam na quebra de articulações — ao andar pelo fluxo, é possível ver corpos machucados, muletas e cadeiras de rodas de quem já foi julgado.
Para crimes como estupro e delação a pena é máxima, a de morte, e a sentença demora mais dias para chegar, porque precisa da aprovação da cúpula da facção. Os documentos trazem a imagem de uma vítima do tribunal do crime, um usuário com o braço esquerdo quebrado por ter roubado alguns gramas de crack.
De acordo com os relatórios, na época das investigações o lucro anual do PCC na cracolândia era de cerca de R$ 80 milhões. O território foi dividido e distribuído aos integrantes mais antigos da facção, chamados de “raiz”, que recebiam dos traficantes pelo aluguel dos espaços, em torno de R$ 1 mil semanal por barraca. Em troca, os traficantes tinham segurança para vender com tranquilidade, garantida pela facção.
Os documentos mostram que, para manter certa ordem na cracolândia, a facção dispunha de um eficiente esquema de funcionários do tráfico. O “barraqueiro” ficava a cargo da montagem e desmontagem das barracas, de forma ágil, para dificultar o encontro da droga durante ações policiais.
Já o “travessia” transportava o crack até o fluxo, escondido em carroças, e até cadáveres de vítimas do tribunal do crime. Em geral, eram usuários de drogas em situação de rua e, por isso, costumavam passar despercebidos pela vigilância.
As investigações ressaltam que a facção arrendava hotéis clandestinos e pensões, apagava os números dos estabelecimentos para dificultar a localização e os usava como local de consumo de drogas e esconderijo. Também estimulava os dependentes a roubar e invadir comércios na região para distrair a polícia enquanto a droga entrava no fluxo.
Com a troca do governo do estado, em janeiro, pelo menos dezenas de policiais envolvidos na Caronte foram realocados, incluindo delegados, escrivães e investigadores. Outro delegado da operação ouvido pela reportagem avaliou como “desastrosa” a mudança abrupta.
— Nós tínhamos tirado a territorialidade dos traficantes. Restaram só os dependentes e os vapores, vendendo no milho, na mão, sem barraca. Não tinha confronto com comerciantes nem agressão. Agora o fluxo aumentou, e eles (o governo) perderam o controle — avaliou.
Depois que deixou a Praça do Cachimbo, a cracolândia se estabeleceu na Praça Princesa Isabel, alvo de uma megaoperação policial em maio do ano passado, uma das fases da Caronte. A partir dali, o fluxo se espalhou pelo centro e migrou para diferentes locais.
O discurso do governo era que, ao dispersar os usuários, a cracolândia ficaria mais “penetrável”. Hoje localizada na Rua dos Gusmões com a Avenida Rio Branco e na Rua dos Protestantes, a cracolândia continua com uma alta concentração de usuários, e as barracas de venda de drogas, ainda que em menor quantidade, permanecem nas vias públicas.
Com a troca do governo do estado, em janeiro, pelo menos dezenas de policiais envolvidos na Caronte foram realocados, incluindo delegados, escrivães e investigadores. Outro delegado da operação ouvido pela reportagem avaliou como “desastrosa” a mudança abrupta.
— Nós tínhamos tirado a territorialidade dos traficantes. Restaram só os dependentes e os vapores, vendendo no milho, na mão, sem barraca. Não tinha confronto com comerciantes nem agressão. Agora o fluxo aumentou, e eles (o governo) perderam o controle — avaliou.
Depois que deixou a Praça do Cachimbo, a cracolândia se estabeleceu na Praça Princesa Isabel, alvo de uma megaoperação policial em maio do ano passado, uma das fases da Caronte. A partir dali, o fluxo se espalhou pelo centro e migrou para diferentes locais.
O discurso do governo era que, ao dispersar os usuários, a cracolândia ficaria mais “penetrável”. Hoje localizada na Rua dos Gusmões com a Avenida Rio Branco e na Rua dos Protestantes, a cracolândia continua com uma alta concentração de usuários, e as barracas de venda de drogas, ainda que em menor quantidade, permanecem nas vias públicas.
— O efeito foi bastante desastroso. E a sensação de violência talvez tenha aumentado, porque a cracolândia não está num único lugar. Agora, é um problema de toda uma região — ponderou.
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública informou que “tem se empenhado” para enfraquecer as “chamadas cenas abertas de uso” em todo o estado. Citando a Operação Resgate, a pasta afirma que prendeu 511 pessoas e 740 quilos de drogas, “o que comprova a eficácia dessa nova dinâmica de trabalho desenvolvida”.
A SSP diz que “a quarta semana de agosto registrou a 21ª queda consecutiva nos casos de roubos no Campos Elíseos e na Santa Cecília”. “Desde o final de março, quando o novo sistema de monitoramento foi implementado, os roubos na região que abrange a cracolândia vêm caindo gradualmente semana a semana”, conclui.