Wikipédia: aos 20 anos, plataforma promove parcerias e está mais confiável

Ao contrário das robustas enciclopédias de papel, que adornavam estantes das salas e eram fontes confiáveis estanques de informação, a Wikipédia é um espelho da própria realidade, em constante movimento e reinvenção. O verbete em português mais consultado em março de 2020, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia de Covid-19, foi “Gripe Espanhola” — com 1,2 milhão de consultas apenas naquele mês, foi também o assunto mais visitado em todo o ano passado, indicando que as pessoas buscavam conhecer sobre uma pandemia antiga para compreender a atual.

Já em outubro de 2018, quando foi eleito o atual presidente do Brasil, o verbete Jair Bolsonaro foi o recordista, com incríveis 2,6 milhões de acessos somente naquele mês, sendo que em setembro a marca já havia sido de 1,6 milhão.

Esse dinamismo torna a enciclopédia digital extremamente útil. No mundo, os mais de 45 milhões de artigos em 300 línguas são acessados 15 bilhões de vezes por mês. Mas, dado o caráter colaborativo de sua construção e a pandemia de fake news em que o mundo está mergulhado – o Brasil no epicentro, é preciso um batalhão de voluntários, editores e administradores que garantam filtros de revisão do conteúdo para torná-lo cada vez mais confiável.

Criada em 11 de maio de 2001, quatro meses depois do lançamento do projeto em inglês, a Wikipédia lusófona se tornou um gigante manancial com mais de 1 milhão de artigos. Atualmente, são 10.687 editores ativos, 718 deles com status de revisor. No topo da hierarquia da enciclopédia colaborativa, 71 voluntários ocupam postos de administradores.

“No início, a Wikipédia era vista com muito preconceito, desafio que estamos superando ano após ano, ampliando nossa comunidade, melhorando nossas regras, combatendo excessos e abrindo portas para instituições importantes, de universidades, museus, arquivos e bibliotecas do Brasil e de Portugal a departamentos das Forças Armadas”, comenta o administrador Rodrigo Padula.

Entre as instituições envolvidas estão Arquivo Nacional, Museu Histórico Nacional, Museu da Imigração, Biblioteca da Marinha, Diretoria do Patrimônio Histórico da Marinha, Museu Naval, Museu Paulista, Museu Aeroespacial, Museu de Évora (Portugal) e bibliotecas da USP que, de forma autônoma, contribuem com a melhoria de verbetes institucionais e de seus acervos. Essas parcerias acabam possibilitando um aumento do acervo da enciclopédia, com qualidade, a partir da digitalização de arquivos e mesmo de forças-tarefa realizadas por funcionários e colaboradores dessas instituições.

Soldados afetados pela gripe espanhola em hospital nos Estados Unidos, em 1918: verbete sobre a pandemia foi o mais acessado em 2020
Foto: Divulgação/US National Museum of Health

Hierarquia e critérios
A Wikipédia é aberta para qualquer um, mas, desde 4 de outubro de 2020, a edição de verbetes em português está permitida apenas para usuários registrados na plataforma. Edições anônimas, identificadas apenas pelo IP, não são mais permitidas.

A plataforma tem cargos, ou estatutos na linguagem própria, todos voluntários, que dão acesso a ferramentas e recursos extras a que o usuário “comum”, que só tem o registro, não tem acesso. Por exemplo, um administrador pode bloquear contas e remover artigos. Um editor pode criar um artigo e remover informações dentro de um verbete, mas não pode remover uma página.

Essa hierarquia é definida pela própria comunidade de voluntários e todos os editores que atendam a alguns pré-requisitos podem solicitar ocupar esses cargos.

“Os colaboradores com determinado tempo de conta registrada e número mínimo de edições, de acordo com cada cargo/estatuto, podem se candidatar, passando por uma votação da comunidade”, explica Padula. “Levamos em conta a experiência e a reputação do usuário/colaborador dentro da Wikipédia para votar.”

Mais do que poder, esses estatutos atribuem responsabilidades extras ao voluntário. Todos os estatutos são regidos por regras e boas práticas de conduta. Entre elas, estão evitar ataques pessoais, guerras de edição e garantir que toda informação seja publicada acompanhada de boas referências, fontes viáveis, verificáveis e independentes. Se o usuário não agir de acordo, pode perder as atribuições especiais, bem como ter sua conta bloqueada.

Apesar de utilizada por todos os falantes da língua portuguesa, é inegável que o conteúdo tem um forte sotaque brasileiro: 60% das edições realizadas na Wikipédia em português vêm da América do Sul. Portugal responde por 35%. O restante vem de outros pontos do globo.

De acordo com balanço realizado por administradores da enciclopédia a pedido da CNN Brasil, são realizadas 5.370 edições por dia, com uma média de novos 141 verbetes criados a cada 24h. Publicado em 5 de março de 2019, o artigo sobre a CNN Brasil já recebeu 1 milhão de acessos e passou por mais de mil edições, feitas por 285 autores diferentes.

Quem mexeu no meu verbete?
O engenheiro químico português João Mário Rodrigues Miranda, primeiro a editar na Wikipédia lusófona — e hoje afastado do projeto — é bastante lacônico ao comentar a importância da enciclopédia colaborativa nos dias atuais. “Acho relevante haver wiki em português”, comenta ele, reticente. “Precisa melhorar os conteúdos”, completa. Miranda diz que costuma usar a versão em inglês, por achá-la mais completa.

Professor de comunicação na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o jornalista Angelo Sottovia Aranha vê o conteúdo colaborativo da Wikipédia como importante pela facilidade de acesso a informações que estimulam a curiosidade e o interesse por assuntos relevantes que seriam ignorados não fossem os ‘insights’ provocados pela pesquisa. “Além disso, os conceitos apresentados costumam ser redigidos em linguagem simples, bem acessível até mesmo ao público não muito adepto à leitura”, analisa ele.

Por outro lado, ele atenta para um problema que é sintomático dos tempos atuais: os usuários que tentam fazer da plataforma um espaço para disseminar desinformação, insultar pessoas ou propagandear.

Em 2014, em uma ação simultânea, os jornalistas Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg tiveram seus perfis na enciclopédia adulterados com críticas. Dois anos mais tarde, a vítima desse tipo de ciberataque foi a nadadora Joanna Maranhão.

Então senador, o pastor e político Magno Malta teve seu perfil adulterado em 2016. Na ocasião, todas as menções relativas a episódios negativos de sua biografia foram apagadas. Em 2019, polêmica parecida ocorreu no verbete sobre o então ministro da Educação, Abraham Weintraub. De um lado, usuários passaram a acrescentar informações de cunho satírico — tom que fere a imparcialidade proposta pelas diretrizes da enciclopédia. De outro, o próprio ministério tentou retirar as informações e chegou a solicitar a exclusão do verbete.

Nesse caso, os administradores tomaram uma medida necessária para conter cibervandalismos: bloquearam o verbete, que passou a ser modificado apenas pelo alto escalão da rede colaborativa.

De olho nesse tipo de problema, no ano passado a comunidade lusófona da Wikipédia decidiu só permitir edições a partir de usuários cadastrados no sistema. Antes, era possível fazer alterações de forma anônima — a identificação, nesses casos, ocorria apenas pelo número IP.

“Edições ruins, mal feitas, tendem a ser eliminadas por editores e visitantes que acompanham aquele conteúdo. Se uma conta faz edições mal intencionadas, além da reversão do erro, caso haja insistência e maiores disputas, a conta pode sofrer sanções”, explica Padula. As punições variam do bloqueio por um tempo determinado a bloqueios globais, ficando a pessoa proibida de criar novas contas, de acordo com gravidade do caso.

“O pior, na minha opinião, é o uso da Wiki por pessoas que tentam fazer dela arma política ou de propaganda política, quer pela extrema-esquerda como pela extrema-direita”, afirma o administrador Luis Almeida. “Esse problema cresce a cada eleição, independentemente do país onde essa eleição ocorre. Tanto apoiadores como opositores de determinadas políticas ou políticos tentam usar a Wiki para fazer valer seus pontos de vista parciais e enviesados.”

“É de extrema importância a defesa de uma enciclopédia neutra e imparcial, ou todo o trabalho dos últimos 20 anos poderá ir pelo cano”, acrescenta ele.

Mas não é apenas o uso político da plataforma que fica no radar dos administradores. Com a relevância adquirida pela Wikipédia, ela passou também a ser utilizada como ferramenta de promoção pessoal de personalidades que não mereceriam figurar numa enciclopédia ou mesmo de produtos.

“Temos problemas constantes com publicidade comercial e institucional, com artigos e conteúdos sobre temas pouco ou nada relevantes em termos enciclopédicos”, pontua o administrador José Mário Pires. “Há ainda o uso da Wikipédia como jornal, ou seja, um peso excessivo para temas da atualidade que, passado um par de semanas ninguém considera relevantes.”

Mais e mais voluntários
A Wikipédia não tem anúncios nem assinatura, mas faz campanhas periódicas de arrecadação de doações no mundo todo, para manter a infraestrutura, funcionários, desenvolver projetos e promover eventos, normalmente vinculados ao acesso à informação e à inovação aberta.

Mas a força da plataforma está concentrada mesmo no engajamento do voluntariado. Os administradores são unânimes em acreditar que o que fará da Wikipédia lusófona uma enciclopédia melhor será o compromisso de voluntários com o projeto. Apesar de a língua portuguesa ser a quinta maior do mundo em número de falantes nativos, a Wiki em português é apenas a 18º maior.

“Creio que o desconhecimento das regras e do que a Wikipédia realmente é e como ela funciona impedem que mais gente edite”, afirma Padula. “Respeitando as regras, todas as instituições, editores e edição são muito bem-vindos.”

Ele acredita que quanto mais as pessoas conheçam as dinâmicas do projeto, maior será o número de interessados em editar os conteúdos, “de forma a autônoma e independente”. “Para contribuir e editar a Wikipédia, nem as pessoas nem as instituições precisam de autorização ou parceria específica”, frisa ele. “Numa era em que a desinformação domina as redes sociais e a política, a Wikipédia e seus bons editores, assim como o jornalismo profissional, se tornam ainda mais importantes.”

As informações são da CNN Brasil.

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