‘Tropa doente’: policiais cometem cinco vezes mais suicídios do que civis

Salários baixos, rotina desgastante e peso de herói são inimigos dos profissionais, segundo Anuário Brasileiro de Segurança Pública

POLICIAIS QUE COMETEM SUICIDIOS

O sargento Gouveia matou dois policiais militares em Salto (SP) Foto: Reprodução/Youtube/BBC News Brasil

“A tropa tá doente e ninguém tá vendo isso”, chora uma policial militar em um áudio gravado após seu colega, um sargento militar, invadir o quartel de Salto, em São Paulo, armado com um fuzil e matar outros dois policiais militares mais cedo naquele mesmo dia, em 15 de maio.

No dia anterior, outro crime semelhante aconteceu dentro da Delegacia Regional de Camocim, no Ceará. Um policial civil invadiu o local de trabalho durante a madrugada e atirou contra quatro colegas, sendo que três estavam dormindo naquele momento. Todos morreram.

Em ambos os casos, os autores dos crimes se entregaram espontaneamente. Em um vídeo revelado pelo Fantástico, da TV Globo, o sargento da PM Cláudio Henrique Frare Gouveia, autor do crime em Salto (SP), diz que era perseguido com escalas exaustivas por parte de seu comandante, morto no ataque: “Não aguento mais, não estou dormindo, meu casamento acabou. Ele não deveria ter destruído a minha vida. Então, é elas por elas.”

Entre 2021 e 2023, foram registrados 13 confrontos desse tipo. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, feito pelo Fórum Nacional de Segurança Pública (FNSP), metade dos casos são cometidos por policiais militares. As outras ocorrências envolvem bombeiros, guarda vidas municipais, policiais civis e penais, além de militares do Exército e guardas municipais.

Suicídio é epidemia na polícia

A exaustão da rotina desgastante das forças policiais tem também o outro lado da moeda. Além do confronto com colegas de trabalho e superiores que personificam a responsabilização pela precariedade das condições de serviço, há também a dimensão em que o profissional desconta em si mesmo todo o seu sofrimento.

É isso que faz com que outro número seja ainda mais impactante: suicídios entre os profissionais das forças de segurança estaduais. Estatisticamente, policiais cometem até cinco vezes mais suicídio que a população em geral.

No Brasil, a taxa média de suicídio entre a população geral é de cerca de seis casos para cada 100 mil habitantes, segundo dados do Ministério da Saúde (dados de 2018).

Já a taxa de suicídio na Polícia Civil de São Paulo é, em média, de 30 casos para cada 100 mil habitantes, enquanto na Polícia Militar é de 21. Para a Organização Mundial de Saúde, quando se atinge a taxa de 10 suicídios para cada 100 mil habitantes, a situação é considerada epidêmica.

Este tipo de morte é a segunda maior causa entre agentes de segurança estaduais em todo o Brasil, conforme revelam dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, perdendo somente para morte em confrontos fora de serviço.

É isso que faz com que outro número seja ainda mais impactante: suicídios entre os profissionais das forças de segurança estaduais. Estatisticamente, policiais cometem até cinco vezes mais suicídio que a população em geral.

No Brasil, a taxa média de suicídio entre a população geral é de cerca de seis casos para cada 100 mil habitantes, segundo dados do Ministério da Saúde (dados de 2018).

Já a taxa de suicídio na Polícia Civil de São Paulo é, em média, de 30 casos para cada 100 mil habitantes, enquanto na Polícia Militar é de 21. Para a Organização Mundial de Saúde, quando se atinge a taxa de 10 suicídios para cada 100 mil habitantes, a situação é considerada epidêmica.

Este tipo de morte é a segunda maior causa entre agentes de segurança estaduais em todo o Brasil, conforme revelam dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, perdendo somente para morte em confrontos fora de serviço.

Em números totais, o relatório revelou que, em 2021, 80 policiais militares se suicidaram em todo o País; contra 52 no ano anterior. Já na Civil, o número de casos aumentou de 13 para 21 em um ano.

As principais circunstâncias que podem ter contribuído para que esses agentes tirassem a própria vida, segundo o estudo, foram:

• Rotina exaustiva;
• Assédio dentro da corporação;
• Desvalorização profissional;
• Má gestão;
• Risco da profissão.

Salários baixos

O primeiro ponto de prevenção ao suicídio defendido pelo Ouvidor das Polícias, Claudio Aparecido da Silva, é o reajuste salarial da categoria. “Isso [baixo salário] tem gerado uma necessidade de buscar outros caminhos para garantir o provimento familiar. Isso tem levado parte dos policiais a esse abismo do adoecimento mental”, aponta.

Na última semana, um projeto de lei do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) estabeleceu o aumento de salários das polícias Civil e Militar. O reajuste médio é de 20% nos salários a partir de agosto deste ano. A categoria, porém, se queixa dos percentuais acordados.

O cargo de soldado da PM de 2ª classe teve o salário reajustado de R$ 3.089,60 para R$ 4.066,54. Enquanto isso, na Polícia Civil, um agente policial de 3ª classe terá um aumento de R$ 3.660,72 para R$ 4.500,34.

Rotina desgastante

O cenário apontado pelo sargento da PM Cláudio Henrique Frare Gouveia, logo após cometer o crime em Salto (SP), indicou uma rotina desgastante com muitos plantões seguidos e poucas folgas. Para se ter uma ideia, a escala na PM de São Paulo varia de 12 horas de trabalho por 36 horas de folga, ou então, 24 horas de trabalho com 48 horas de folga.

Em uma tentativa de suprir o salário baixo, os agentes fazem os ‘bicos’ quando estão longe da corporação. Os trabalhos extras são, em grande parte, integrando equipes de segurança particular ou como vigias.

“A atividade policial é extenuante por si só. [Com salário baixo], ele tem que procurar outra fonte de renda para garantir o sustento da sua família. Naturalmente, ele se expõe ainda mais […], porque está protegendo o patrimônio do outro sozinho, você e Deus”, opina Claudio.

Além do cansaço que essa rotina de ‘bico’ gera, mental e físico, há também a desvinculação familiar, pois o agente não tem tempo para a própria família, e muito menos, para ter uma vida social ativa, em que possa se distrair e se divertir, argumenta o Ouvidor.

Ele defende, ainda, que se a instituição procurar outros caminhos de valorização profissional, como a Operação Delegada –programa para que agentes voluntários da Polícia Militar reforcem o policiamento na cidade durante suas folgas, que é remunerada–, fica mais fácil garantir que os agentes tenham uma carreira promissora e mais respeitada.

“Provavelmente, a gente consiga começar a dar resposta a essas questões relacionadas ao adoecimento de policiais. […] O que eu estou dizendo é que valorização também faz controle de mortalidade”, declara.

Assédio dentro do trabalho

A questão da precarização do serviço se torna um problema ainda maior quando não há diálogo, por exemplo, com os policiais de baixa patente, como é o caso da PM. A coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Pública (FNSP), Juliana Martins, aponta que essa pode ser a receita para fazer com que pessoas se sintam perseguidas.

“Não adianta você pagar um mau salário, ter uma escala de trabalho abusiva e ter essa cadeia de comando, principalmente na militar, que é essa coisa do ‘cumpra-se’, onde não tem diálogo. Fica muito mais difícil você lidar e as pessoas se sentem, às vezes, perseguidas ou mal interpretadas”, aponta.

Tabu e falta de respaldo

Se na sociedade as questões mentais e o suicídio já são tratadas como um tabu, em um nicho mais específico, como as corporações, não é diferente. As ações de prevenção sobre o tema ocorrem pontualmente no mês de setembro, quando há a campanha Setembro Amarelo.

Isso reforça, segundo a coordenadora da FNSP, que a questão do suicídio seja tratada como algo que não diz respeito à instituição policial, mas sim algo pontual de alguns indivíduos.

“O que a gente tem visto é que as polícias tendem a individualizar as questões. ‘Ah, foi o indivíduo que teve um problema pontual’. Ou ele estava com problema em casa; ou ele teve um acesso de raiva; ou esse cara não tinha muito perfil. Então, são todas questões que botam na conta do indivíduo um problema que é organizacional”, declara.

Ela destaca a falta de reflexão sobre o tipo de doença que é produzido com as práticas de gestão, como as escalas abusivas, assédio moral, o risco da profissão, o trabalho à frente de qualquer outra coisa, e acesso às armas a todo momento. Portanto, se o agente não tiver um aporte da instituição, acaba adoecendo.

“Ele tem o meio como instrumento de trabalho. Arma de fogo é um instrumento de trabalho de policiais, não que ele vá usar essa arma todos os dias ou com frequência, mas é um instrumento de trabalho. Ele tem treinamento para usá-la. Ele anda com ela 24 horas na maioria das vezes. Então como fazer para que a gente possa de fato trabalhar de maneira preventiva?”, questiona.

Um exemplo a ser citado é que a Polícia Militar tem como lema ‘força e honra’, que contribui com o estereótipo de virilidade, profissão acima de tudo, e não demonstrar que necessita de ajuda psicológica. Para a psicóloga, isso enfatiza o tabu existente frente às doenças mentais dentro das corporações.

“Ele [policial] sai preparado para ser super, um super profissional, super-herói, o que aguenta tudo em nome da profissão, né? Então, ele vai criando essa identidade profissional que o prepara para ser algo que ele nunca vai ser na verdade, e quando ele vai provavelmente se deparando com a própria humanidade, a própria fragilidade, esse é um processo muito difícil de separar”, reflete.

Há também outra problemática a ser levantada quando se fala sobre a saúde mental das corporações: qual a estrutura psicossocial de atendimento disponibilizada para esses agentes? Psicólogos, um bom convênio que ajude no acompanhamento também fora das instituições? A coordenadora da FNSP afirma que, geralmente, o que se vê é uma estrutura absolutamente insuficiente.

“É muito ruim, pensando que é uma profissão que a gente já sabe que vai produzir doença em alguma medida”, reforça.

Dificuldade em adotar políticas de prevenção

Em exemplo aos dados levantados pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, Ceará e Rio Grande do Norte deixaram de informar esses dados. Juliana diz que a dificuldade de conseguir esses dados podem impossibilitar ações mais combativas para a diminuição de suicídio e violências dentro das corporações.

“A falta de dados consistentes, dados que sejam documentados periodicamente, dificultam que a gente possa dar uma resposta adequada. O Fórum faz um levantamento junto às secretarias estaduais, então, de fato temos mesmo os dados, quando tem, das polícias civis e das militares. Mas eu acredito que muitas dessas organizações também não têm esses dados sistematizados”, argumenta.

Para exemplificar, ela faz alguns questionamentos: qual o número de policiais afastados por questões mentais? Quanto tempo dura a licença? O que tem gerado esses afastamentos por questões de saúde mental? O que é feito quando esses agentes voltam a trabalhar?

A coordenadora da FNSP acredita que essas são respostas que as próprias instituições não têm, e caso tenha, é algo muito frágil. E claro, se é algo que se desconhece, é ainda mais difícil de se combater, pois não se sabe qual o tamanho do problema. “É realmente bastante preocupante a falta de dados”, declara.

Para tentar melhorar as políticas de prevenção de novos casos, em 2019, o senador Alessandro Vieira (Cidadania – SE) apresentou uma PL que se tornou em janeiro deste ano uma lei complementar da 13.675/2018, que cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), e da 13.819/2019 – que institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio. Com a modificação, ficou prescrito que serão adotadas as seguintes medidas.

• O Pró-Vida desenvolverá, durante todo o ano, ações voltadas para a assistência social, a promoção da saúde mental e a prevenção do suicídio entre profissionais de segurança pública e defesa social e atuará preventivamente prestando acompanhamento psicológico e multidisciplinar específico aos seus familiares;

• O Pró-Vida publicará, anualmente, dados sobre transtornos mentais e suicídio entre os profissionais de segurança pública e defesa social de todo o território nacional, conforme regulamentação a ser editada pelo Poder Executivo federal;

• O Pró-Vida também deverá desenvolver ações de combate a todas as formas de discriminação e preconceito, a fim de promover uma cultura de respeito aos direitos humanos;

• A implementação das ações será pactuada entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios.

“Eu ressalto essa questão mesmo da valorização profissional. Acho que é algo que tem que andar em conjunto com a questão do cuidado. Não adianta só ter psicólogo, psiquiatra, ter pessoas ali para acolher o policial. Tem é que parar de adotar práticas que podem levar ao adoecimento”, finaliza Juliana.

A reportagem questionou a Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis e a também a Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais sobre as ações de prevenção de suicídios de agentes adotadas, e se há o acompanhando de casos pelas instituições, mas até o momento não houve resposta. O espaço segue aberto para qualquer manifestação.

Atenção! Em caso de pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida), que funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, por e-mail, chat ou pessoalmente. Confira um posto de atendimento mais próximo de você (https://www.cvv.org.br/postos-de-atendimento/)

Com informações do Terra.

 

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