“Sequestro da Fé”: A onda de fake news que assola igrejas evangélicas em 2022

Uma mulher, indignada, em frente à câmera de seu smartphone questiona “De onde foi que vocês tiraram isso que para poder servir a Jesus tem que votar em Bolsonaro? Que absurdo é esse? Que absurdo é esse, Igreja? Acorda!”. “Eu estou com vergonha de dizer que sou cristã para não ser confundida […] com uma pessoa que está sendo enganada por pastores”, desabafou. O relato – que já soma mais de 736 mil visualizações no TikTok – é de Paloma Gomes, 35.

A professora de Geografia, que agora trabalha com vendas em Mossoró (RN), frequentava a Igreja Universal do Reino de Deus há quase 15 anos, mas deixou de ir há cerca de um mês porque se cansou do que ela chamou de “sequestro da fé”.

Nas últimas vezes em que foi ao culto, Paloma lembra de ver no telão da igreja, diferentes leis, supostamente tramitando no Congresso Nacional, uma delas, lembrou afirmaram que igrejas seriam proibidas de atrair novos fiéis. Desconfiada, no próprio culto, ela usou seu celular para conferir no Google e viu que se tratava de uma informação falsa. A suposta lei das igrejas é do Rio de Janeiro e, na verdade, trata sobre assédio religioso em repartições públicas.

Influência pastoral

Na semana do primeiro turno, 57% dos eleitores evangélicos que votariam em Bolsonaro acreditavam que Lula fecharia igrejas, caso fosse eleito. O dado é de uma pesquisa da Genial/Quaest. Para Vinicius do Valle, cientista político e ​​curador do Observatório Evangélico, essa aderência se deve à confiança que existe dentro da comunidade religiosa. “Quando você tem um membro que está espalhando esse tipo de coisa, há um acolhimento maior”, afirmou.

Outro fator relevante é a chamada “influência pastoral”. Essa influência é maior entre evangélicos, uma vez que eles frequentam mais as igrejas do que outros grupos religiosos: “O grau de influência pastoral entre os evangélicos é, portanto, ligeiramente mais elevado, o que não significa que os evangélicos se comportam como gado, como rebanho, mas existe uma confiança dentro dessa relação. Portanto, uma fake news ali dentro é mais fácil de ganhar aderência do que se fosse dita por um desconhecido, por outro canal que não tem a mesma confiança, a mesma relação”, sustentou.

Essas informações, porém, muitas vezes não surgem nas igrejas. Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião, detalhou como funcionam essas redes de desinformação que, muitas vezes, partem de lideranças e figuras no poder:

“Muito desse conteúdo falso mentiroso calunioso vem de lideranças religiosas, […] personagens com muito destaque, pastores midiáticos, personagens do mundo político, Ministros de Estado ligados à fé cristã”.

A partir daí, esses conteúdos se difundem por sites gospels e portais de notícias do mundo evangélico e passam a ser repercutidos mais amplamente.

A demonização do opositor

Nos últimos meses, Paloma viu aumentar o número de cultos em que versículos da Bíblia eram tirados de contexto com o objetivo de “demonizar” o voto em Lula e “santificar” o voto em Bolsonaro: “Tentam encontrar uma forma de colocar aquilo ali dentro da palavra de Deus”.

Em um telão, mais de uma vez, Paloma assistiu nos cultos a vídeos com informações falsas sobre aborto, fechamento de igrejas, banheiros unissex, tais quais os que têm circulado nas redes sociais. “Todas essas fake news, a Igreja também coloca lá dentro”, afirmou. “Pegaram um vídeo de Lula fora de contexto, Lula dizendo que o Deus de Bolsonaro não era o mesmo Deus dele e colocaram lá na Igreja”, contou ela, que passou a ver os conteúdos também nos grupos de evangelização no WhatsApp e nos perfis de pastores nas redes sociais.

Magali Cunha explicou ao Yahoo! Notícias que essa demonização de candidatos é utilizada, sobretudo, por mexer com as crenças e com a fé dos eleitores. “Isso tem um efeito muito profundo porque as pessoas, há muitos anos nas igrejas, em especial as evangélicas, assimilam muito conteúdo associado à cultura gospel do inimigo, das músicas que falam de guerra espiritual, de combate ao inimigo, e agora os inimigos ganham nome nas eleições, […] então vai ser um partido político, vai ser um candidato, tudo isso personificado nessas mentiras que circulam”, detalhou.

Paloma viu a situação ficar insustentável após perceber que a política não saía da pauta das celebrações, o que a fez se sentir “praticamente expulsa” de sua igreja. Mesmo frequentando hoje outra denominação onde não se fala sobre o assunto, ela sente saudades de como as coisas eram: “O que mais me dói mesmo é que eu sinto falta da igreja, de como era antes. Dos trabalhos sociais, dos momentos bons que eu passei lá dentro. Eu cheguei doente na igreja, fui curada. Eu me sinto desamparada hoje”, compartilhou. “Foram anos e anos naquele lugar e de repente você não tem mais. E não tem mais como, eu não tenho mais cara para ir. É muito difícil, é um sequestro da fé”, lamentou.

Da pressão ao afastamento

A irmã de Paloma, Maria Gomes, 37, há pouco mais de 15 dias deixou a Igreja Batista da Lagoinha, que já frequentava há dois anos em Mossoró (RN). Assim como sua irmã, Maria se sentiu constrangida com a pressão sobre o voto.

A Igreja Batista da Lagoinha tem unidades nos Estados Unidos e Canadá comandadas por André Valadão, que, na quarta-feira passada (19), publicou um vídeo mentindo sobre ter recebido uma intimação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), determinando que ele se retratasse a respeito de mentiras contadas sobre Lula.

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