Mulheres pretas clamam por Justiça e são linha de frente no Brasil da barbárie

Patrick Sapucaia, de 16 anos, Alexandre dos Santos, de 20 anos, e Cleverson Guimarães, de 22 anos, foram os nomes ecoados pelas mulheres da comunidade da Gamboa de Baixo após uma operação policial que resultou no assassinato dos jovens durante a madrugada.

Cenário paradisíaco para gravações de clipes de cantoras como Iza, Marina Sena e Anitta e praia favorita da classe média que visita Salvador, na Bahia, a comunidade da Gamboa se viu abandonada diante da crueldade policial e da disparidade racial e social que mata pessoas pretas em número recorde no Brasil.

Uma semana após a tragédia, que aconteceu no primeiro dia de março de 2022, foram as mulheres da comunidade que desceram o morro para clamar por Justiça e exigir que o governo da Bahia não aceite a versão da polícia dos fatos.

Com gritos de “assassinos” e “racismo”, as mães e trabalhadoras da comunidade falaram com a imprensa sobre a real situação da morte dos jovens: de acordo com os moradores, os policiais chegaram ao local jogando bombas de gás e atirando, mesmo não encontrando nenhuma resistência.

(Reprodução Instagram)

Vizinhos, em entrevista ao jornal “Folha de S. Paulo”, também afirmaram que não houve troca de tiros, e as mães dos jovens assassinados afirmaram que os corpos dos filhos foram removidos e o local das execuções alterado. A versão oficial da Polícia Militar diz que a base recebeu uma denúncia de sequestro, e que foi recebido a tiros pelos jovens, que foram feridos em um suposto “revide”.

A justificativa da polícia não surpreende em meio a um Brasil marcado pela violência institucional contra pessoas pretas e os números alarmantes de racismo em todas as camadas sociais. Um dos cenários mais dolorosos é a movimentação das mulheres pretas, que estão sempre na linha de frente de protestos e pedidos de Justiça pelo assassinato em massa causado pela branquitude brasileira.

São essas mães, tias e filhas que carregam cartazes com os rostos de jovens assassinados pela polícia, e pegam para si a dolorosa missão de clamar por uma Justiça que nunca vem.

O racismo é estrutural

Ao longo de 2020 as polícias brasileiras mataram 6.416 pessoas e 5.062 delas eram negras (pretas e pardas). O número representa 78,9% do total contabilizado pela 15ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira (15) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Por mês foram assassinadas 422 pessoas negras, ou seja, sete pessoas negras foram mortas a cada turno de 12 horas de trabalho das forças policiais no país. As pessoas brancas representam 20,9% das vítimas fatais.

O percentual é discrepante se comparado com a composição da população do país, formada por 42,7% de brancos e 56,1% são negros, segundo a estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em 2019, o anuário apontou que as polícias do Brasil mataram 6.357 pessoas, sendo 5.028 delas negras, o que representava 79,1% do total, índice muito próximo do balanço de 2020.

O relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública foi elaborado a partir das bases de dados oficiais, disponibilizadas pelos estados, sobre as mortes decorrentes de ação policial. Sobre o ano passado, o estudo revela ainda que quase todas as vítimas são homens (98,4% do total) e o perfil é majoritariamente jovem, 76,2% tinham entre 12 e 29 anos.

Segundo o Atlas da Violência 2020, parceria entre o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma redução de 12,9%.

Apenas em 2018, os negros (soma de pretos e pardos, segundo classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 37,8. Entre os não negros (soma de brancos, amarelos e indígenas) a taxa foi de 13,9, o que significa que, para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram mortos.

As mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não negras.

Na hora da morte, as mulheres permanecem

Pedindo Justiça pelo assassinato policial na Gamboa, a artista Luedji Luna fez um post emocionado em suas redes sociais, deixando flagrante a hipocrisia de uma sociedade que frequenta o local e usufrui de suas belezas, mas fica muda na hora de usar a voz para promover consciência política.

“Essa foto aí foi tirada na praia da Gamboa, comunidade que acolheu a mim e equipe (majoritariamente preta), para as fotos onde fui capa de revista. A comunidade me emprestou a beleza de sua paisagem, me abriu as portas de suas casas, me deu tomada pra ligar o refletor, me alimentou inúmeras vezes, de tantas formas, e hoje chora! Salvador, (bonitinha, mas ordinária), é um paraíso pra quem não é de lá.

Esse mesmo paraíso que figura nos clipes das celebridades, fica a mercê de uma das polícias que mais mata no Brasil, e de um governo que de esquerda tem muito de direita, pois quando se trata de corpos pretos acaba dando no mesmo: tiro! Eu quero saber o que a comunidade precisa? O que as mães precisam?”, afirmou a artista, que deixou claro que a mesma classe média alta branca que visita Salvador a passeio precisa começar a colocar a mão na bolso para cuidar das comunidades que tanto professa amar.

A jornalista Maíra Azevedo, a Tia Má, postou fotos angustiantes das mães da Gamboa chorando por seus mortos. “E no primeiro dia de março…o grito que nos toma é de dor! Mortes aos montes na Gamboa, espaço que pra alguns é paraíso para fotos, para outros inferno por conta de ser quem são. Estamos adoecidas, atormentadas, nossas mortes não valem nada…para quem nos mata. É um choro que não comove, pq justificam os corpos no chão pq tinham “envolvimento”.

Até quando vão matar jovens pretos aos montes? Até quando vão chegar nos bairros periféricos atirando? Até quando vão usar o argumento de que era “envolvido” para justificar as mortes dos nossos?”, lamentou ela, preta e mãe de um menino negro.

(Reprodução Instagram)

São as mulheres à frente

O clamor das mulheres repete a verdade que os homens brancos não querem saber: as justificativas das polícias brasileiras são sempre as mesmas, e faltam políticas públicas com recorte de gênero e racial para começar a discutir o problema de forma mais ampla.

Assim como nos assassinatos da Gamboa de Baixo, a PM brasileira tem como resposta padrão que o assassinato de moradores (sempre de pele preta) aconteceu por efeito colateral de conflito provocado. Em maio de 2020, um tiroteio na Cidade de Deus, Zona Leste do Rio, causou polêmica quando a PM baleou o jovem João Vitor Gomes da Rocha, de 18 anos, durante uma distribuição de cestas básicas.

A polícia afirmou que o jovem estava armado e tinha ligações com o tráfico. O projeto que fazia a distribuição e membros da comunidade negaram a versão da PM. Na ocasião, foram as mulheres da comunidade que questionaram a versão da polícia e mobilizaram protestos após a ação.

São inúmeros os protestos pelo Brasil que contaram com mulheres na linha de frente, especialmente nos momentos de enfrentamento policial. Em 2015, foram as jovens estudantes que protestaram contra o fechamento de escolas em São Paulo pelo então governador Geraldo Alckmin.

Em 2019, mulheres se uniram na Câmara dos Deputados para protestar contra a reforma da previdência. Todos os anos, são grupos de mulheres pretas que relembram a chacina da Candelária, que em junho de 1993, causou a morte de oito jovens moradores de rua. Na época, os policiais militares foram condenados e preso pelo crime, mas foram liberados em seguida.
A versão do estado

Em comunicado oficial enviado ao Yahoo!, o secretário de segurança pública Ricardo Mandarino afirmou que focará na implementação de políticas públicas em prol de reduzir as mortes em operações policiais como a que atingiu a Gamboa de Baixo. Mandarino também afirmou que pretende acelerar as investigações sobre a responsabilidade da PM.

A resposta para as famílias e as mulheres da comunidade que fecharam vias de Salvador pedindo Justiça, entretanto, foi sucinta. “A SSP, através da Corregedoria Geral, está acompanhando o caso de perto para que nós possamos esclarecer o mais rápido possível para a sociedade qual foi a dinâmica da operação que aconteceu na Gamboa”, afirmou.

Enquanto as autoridades prometem investigações para melhorar o futuro, as mulheres das comunidades ao redor do Brasil continuam sozinhas na linha de frente, lamentando mortos que não serão trazidos de volta. Em meio ao racismo institucional, Elza Soares continua tendo razão: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. 8 de março, o mês de março continua sendo uma data política.

 

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