Manifestações na França condenam restrições oficiais contra quem recusa a vacina para a Covid-19

Mais 150 mobilizações estão convocadas para hoje na França, impelidas pelo repúdio a restrições oficiais contra quem recusa a vacina para a Covid-19.

Da extrema direita à extrema esquerda, há quatro semanas cada vez mais franceses de distintos perfis ocupam ruas do país aos sábados, em atos que, na semana passada, alcançaram, de acordo com números oficiais, um recorde de 200 mil pessoas.

Esta marca pode ser superada neste sábado, dois dias antes de o passe sanitário — um atestado oficial de que uma pessoa tomou duas doses de vacina contra o vírus, se recuperou de uma infecção nos últimos seis meses ou fez um teste de resultado negativo nas últimas 48 horas — passar a ser exigido para se entrar em bares, cafés, restaurantes, aviões, trens, ônibus e centros hospitalares.

O comprovante deve ser exigido até 15 de novembro, e já é cobrado desde o último dia 21 em espaços de lazer com capacidade para mais de 50 pessoas, como museus, piscinas públicas e cinemas.

Desde o começo da pandemia, estas são as primeiras manifestações de fôlego contra uma política sanitária do governo de Emmanuel Macron, que aposta que a pressão é a melhor estratégia para alcançar a meta de 80% de vacinados entre a população francesa.

A vacinação aumentou desde o anúncio do passe, mas também o ritmo de novas infecções, acelerado pela variante Delta: enquanto, em 4 de julho, a França registrou 2.311 novos casos, o número subiu para 21.910 um mês depois.

Pouco mais de 49% da população francesa já tomaram as duas doses, e 65% tomaram uma. Segundo dados oficiais, dos hospitalizados no final de julho, 83% não tinham tomado nenhuma dose da vacina.

A parcela da população simpática à causa das ruas vai além daqueles contra as vacinas. Segundo pesquisa do jornal Les Echos, apenas 16% dos franceses afirmam que não pretendem se vacinar. Enquanto isso, de acordo com um estudo da Harris Interactive da semana passada, 40% da população dizem apoiar as manifestações, e 51% as “compreendem”.

Comparações com o nazismo

Duas tendências características da cultura francesa dão impulso ao movimento, segundo Vincent Tournier, cientista político da Sciences Po de Grenoble: um sentimento de desconfiança do Estado, de uma parte, e uma valorização das liberdades individuais e do individualismo, de outra:

— Se levarmos os slogans dos manifestantes a sério, encontramos, ao mesmo tempo, um imaginário antifascista, mais de esquerda, e um imaginário nacionalista, mais de direita — afirmou Tournier.

Pela direita, há setores adeptos de teorias da conspiração, que por vezes empregam símbolos da repressão nazista para denunciar uma “ditadura sanitária”. Muitos manifestantes — para grande indignação de associações judaicas e que lutam contra o antissemitismo — usam estrelas de Davi amarelas sobre o peito, e outros portam cartazes onde se lê “O passe sanitário liberta”, em referência à inscrição “O trabalho liberta” (“Arbeit macht frei”) de campos de concentração e extermínio.

Pela esquerda — que por vezes, como no caso de Paris, marcha em atos independentes, separada da direita — há grupos anarquistas, e também apoiadores da França Insubmissa, do ex-candidato presidencial Jean-Luc Mélenchon.

O próprio deputado tem sido muito crítico ao passe, tendo o classificado como “uma mudança profunda em nosso modo de vida” que pode levar a “uma sociedade de controle permanente e universal”.

Os protestos incluem uma presença forte de pessoas relativamente jovens, sobretudo entre 25 e 34 anos, que se sentem os menos beneficiados pela vacina, e ao mesmo tempo, os mais impactados pelo passe sanitário. Uma pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) constatou que mulheres tendem a rejeitar mais os imunizantes do que homens, e que, quanto mais baixo a pessoa estiver na escala social, maiores são as chances de não querer se vacinar.

Há convergências e diferenças entre o movimento atual e os manifestantes dos coletes amarelos, afirmou o diretor do Observatório de Opinião Pública da Fundação Jean-Jaurès, Antoine Bristielle. Segundo ele, os manifestantes de 2018 tinham um perfil mais velho e rural do que os atuais.

O apoio àquelas manifestações — 70%, em seu início — também era mais alto. Em ambos os casos, no entanto, são movimentos horizontais, onde estão sobrerrepresentados quem vota nulo e os eleitorados de Mélenchon e da ultraconservadora Marine Le Pen.

— Quanto mais as pessoas apoiam o movimento dos coletes amarelos, mais são a favor dessas manifestações — afirmou Bristielle à rádio France Inter. — Ambos os casos indicam como a sociedade francesa avalia as instituições, com um senso de ilegitimidade.

Liberdades individuais

A mídia francesa tem procurado destacar que nem todos os manifestantes propagam ideias disparatadas. Há quem diga que, se não protestar agora, mais liberdades individuais podem ser corroídas. Outros temem vacinas criadas em tempo recorde, com novas tecnologias (a França aplica as vacinas da Moderna e da Pfizer, que usam um novo método).

Na última quinta-feira, em um julgamento que decidiu a favor da constitucionalidade do passe sanitário, a mais alta corte francesa reconheceu que elementos do passe sanitário “comprometem a liberdade de ir e vir” e “o direito à expressão coletiva de ideias e opiniões”. Ainda assim, decidiu a favor da medida, por entender que, ao aprová-la, o Parlamento “persegue o objetivo de valor constitucional de proteção da saúde”.

O governo francês mantém-se firme frente às ruas, apostando que a maioria da população o apoia e que conseguirá isolar os grupos extremistas e persuadir os demais a se vacinarem. Em entrevista ao jornal Le Parisien do dia 18 de julho, o porta-voz do governo Gabriel Attal usou palavras duras, na qual distinguiu uma França “trabalhadora e pró-ativa, que quer deixar o vírus para trás e trabalhar”, de “uma franja caprichosa e derrotista, muito minoritária, que ficaria feliz em permanecer no caos e na inatividade”.

Macron busca colocar-se no centro, exibindo-se como alguém diferente “de todos os extremismos, quer de esquerda quer de direita”, afirmou o cientista político Vincent Tournier.

— Deste ponto de vista, a contestação do passe sanitário lhe oferece uma avenida. Permite que consolide a sua imagem de presidente razoável e responsável, protetor dos franceses, longe de agitadores inconscientes que não se preocupam com o interesse geral — disse.

Por ora, a estratégia mostra-se eficaz do ponto de vista sanitário. Em meados de julho, imediatamente após o anúncio do passe sanitário, a França acelerou rapidamente seus índices de vacinação, chegando a 481 mil primeiras doses aplicadas no dia 18, em comparação a 89 mil duas semanas antes.

No entanto, há mais de uma semana os números caem, e, na quarta-feira, foram de 145 mil. O governo aposta que o endurecimento de novo levará a um aumento dos números, sobretudo entre jovens urbanos.

Segundo Alexis Spire, coautor do estudo com refratários da vacina do CNRS, há no entanto setores para quem o passe sanitário não muda muita coisa no cotidiano, e que não devem se convencer. Estes, que já são aqueles mais distantes do Estado francês, podem acabar por ver as vacinas ainda com mais desconfiança.

— Há uma parte da população que não vai a restaurantes, ao cinema nem ao teatro, e não viaja de trem e nem de avião. Para atingir os reticentes das classes populares, da classe trabalhadora e das áreas periurbanas, seria melhor tentar convencer do que ameaçar — afirmou Spire aos Les Echos.

As informações são do Jornal O Globo.

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