Dia da Visibilidade Trans: acesso integral à saúde ainda enfrenta grandes desafios

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

O texto acima, do artigo 196 retirado da Constituição Federal de 1988, destaca a importância do acesso à saúde como um direito de cada cidadã e cidadão brasileiro. No entanto, ainda em 2022, às vésperas do Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado em 29 de janeiro, a população trans e travesti enfrenta inúmeros desafios no atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Os relatos incluem discriminação, despreparo dos profissionais, acolhimento inadequado, dificuldade no entendimento da transexualidade e a ausência de políticas públicas e programas específicos voltados ao combate ao preconceito.

Em 2021, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT) completou 10 anos com empecilhos para que as diretrizes voltadas para a inclusão dessa população sejam colocadas em prática.

O que ainda dificulta o acesso ao atendimento

Embora o acesso à saúde seja preconizado com um direito universal, a própria estrutura dos serviços ainda contribui para dificultar o acesso de parte da população ao atendimento.

“Os serviços de saúde ainda possuem estruturas excludentes, que dificultam o acesso da população iletrada. Muitas mulheres trans e travestis foram expulsas de casa e da escola muito cedo e, por isso, muitas não sabem ler e escrever, o que dificulta vários acessos, inclusive no mercado profissional, empurrando muitas delas para a prostituição”, afirmou o estudante de mestrado da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Michel de Oliveira Furquim dos Santos””’, que estuda o tema.

Segundo Santos, a rotina de trabalho à noite e de madrugada e de descanso durante o dia leva ao choque com os horários regulares de consultas, exames e atendimentos nos serviços de saúde.

A professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Maria Amélia Veras, afirma que a discriminação no atendimento acontece a partir de diferentes nuances.

“O estigma e a discriminação se revelam de várias maneiras, como pela recusa do nome social ou pela ausência de contato, seja com um olhar direto ou com a recusa em examinar. Há uma série de dificuldades que aparecem nos estudos nacionais e internacionais, que são muito consistentes, mostrando que há uma barreira de acesso”, diz Amélia.

Segundo a pesquisadora, as pessoas que já sofreram discriminação evitam ou adiam ao máximo a busca pelos serviços devido ao medo de novos episódios de rejeição e preconceito. “Essas pessoas evitam a busca ou retardam ao máximo possível a busca pelos serviços, até que se torne um problema mais sério”, afirma.

A cidade de Petrópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro, inaugurou um Centro de Cidadania LGBTI no final de 2021. Para o coordenador da iniciativa, Marcelo Prata, a consulta com ginecologistas e urologistas ainda é uma das barreiras no atendimento à população trans.

“O acesso à saúde dessa população ainda é restrito e difícil. No caso dos homens trans, eles não conseguem atendimento na ginecologia, das mulheres trans tem a questão da próstata a ser tratada na urologia – são várias demandas que a saúde ainda não contempla”, explica.

A situação de vulnerabilidade também contribui para a falta de acesso aos cuidados da atenção básica em saúde. “Estamos falando de uma população que está à margem das políticas sociais e do convívio. Muitas pessoas não tinham o cadastro único, então os serviços acabam fazendo o encaminhamento para que seja feito esse cadastro. Então há a necessidade inclusive do acolhimento dessas demandas”, afirma Prata.

O especialista, que já atuou em serviços públicos de Niterói, explica que os desafios para o acesso à saúde são diferentes em cidades pequenas e grandes centros urbanos.

“As queixas são as mesmas, mas nas cidades grandes as pessoas buscam mais os serviços. Nas cidades pequenas, se elas foram mal atendidas em um lugar, não voltam de jeito nenhum. Há um medo de chegar nas unidades e não ser acolhida”, diz.

Despreparo dos profissionais da saúde

A falta de conhecimento por parte de profissionais para o atendimento e cuidado de questões específicas da saúde da população trans e travesti é um dos principais gargalos apontados na promoção à saúde de forma integral.

O mestrando da USP, Michel de Oliveira Furquim dos Santos, afirma que a lacuna no entendimento das especificidades em saúde da população trans e travesti também está associada à formação acadêmica.

“As formações acadêmicas, e a ciência em si, ainda são produzidas e reproduzidas majoritariamente por pessoas cisgênero, o que dificulta que temas relacionados à realidade e à experiência de pessoas trans, travestis e não binárias entrem nos debates e nas discussões no meio científico acadêmico”, disse.

A opinião também é compartilhada pela professora da Santa Casa, Maria Amélia Veras. Para ela, a ampliação das discussões sobre a saúde de pessoas trans na graduação de cursos de saúde poderá ter impactos positivos na adesão dessa população aos serviços.

“Há um desconhecimento dos profissionais de saúde em geral sobre o que é um corpo trans e quais são as suas necessidades. Não faz parte dos currículos dos cursos de saúde, de uma maneira geral, que esse tema seja abordado de forma que os profissionais se sintam familiarizados e seguros”, afirma.

Moradora da Zona Norte de São Paulo, a jornalista Lívia Franco Martin atua na biblioteca da Faculdade de Direito da USP. Em 2015, ela foi submetida à cirurgia de redesignação sexual e, hoje, conta com os serviços públicos para o monitoramento das condições de saúde.

Lívia afirma que o atendimento, de modo geral, costuma ser desconfortável e que os serviços de saúde não são pensados de modo a incluir a população trans.

“Da formação dos profissionais aos questionários de identificação, com perguntas como sexo e gênero. Outro momento incômodo é durante a triagem e a anamnese, nas quais, mesmo que a questão que te leve a procurar o serviço não tenha nada a ver com o seu processo de transição ou com a terapia hormonal, já fazem pressuposições sobre você”, afirma.

O caminho em busca de melhorias no acolhimento dessa população nos dispositivos de saúde é longo. Para os especialistas, o ponto de partida pode estar no reforço da inclusão de trans e travestis na formulação das políticas públicas na área.

“Também são necessários professoras e professores trans e travestis em sala de aula e na coordenação de cursos nas áreas da saúde, além de pessoas trans e travestis formadas nas áreas de saúde, para não apenas funcionarem como objeto de pesquisa e interlocutoras, mas como produtoras dos saberes e da ciência”, afirma Santos.

Para ele, também se faz necessário o engajamento de pessoas cisgênero, de profissionais de saúde e da sociedade em geral, para que situações de transfobia e de exclusão sejam combatidas por todas as pessoas.

“Às vezes, uma melhoria nesse serviço depende de uma ação simples, como respeitar o uso do nome social, deixando a revelação de que se é uma pessoa trans apenas para a conversa reservada com o médico”, diz Lívia.

Serviços de saúde específicos para a população trans

Em novembro de 2018, o município de Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, inaugurou o ambulatório de atenção à saúde da população travesti e trans, João W. Nery.

A iniciativa pioneira destina um espaço exclusivo para a assistência de pessoas trans nos processos de hormonização e no cuidado integral à saúde.

Para os especialistas, a criação de unidades de saúde voltadas para a população trans e travesti representa um avanço. No entanto, eles reforçam que a existência desse tipo de serviço não deve entendida como justificativa para que serviços básicos e de pronto atendimento não sejam acolhedores da mesma forma.

“Algo que muitas de minhas interlocutoras já relataram é o encaminhamento para serviços especializados, como o CRT, na Santa Cruz, ou para o Hospital das Clínicas da USP, para acompanhamentos que poderiam ser feitos em unidades básicas de saúde mais próximas de suas casas. Alguns profissionais entendem que estas pessoas devem ser atendidas somente nestes espaços”, afirma Santos.

Para a professora da Santa Casa, Maria Amélia Veras, o redirecionamento generalizado da população trans e travesti para os serviços especializados, diante de questões que podem ser assistidas no contexto da atenção básica, gera uma sobrecarga da demanda nesses locais.

“Um caminho que vem sendo traçado, no município de São Paulo, por exemplo, é disseminar a hormonização para várias unidades básicas de saúde. É uma medida acertada no sentido de democratizar e de ampliar o acesso”, diz Amélia.

Segundo ela, a inclusão da população trans e travesti nos serviços de saúde também contribui para a naturalização da presença dessas pessoas nos mais diversos ambientes sociais.

“Quando você coloca as pessoas trans no serviço de atenção primária, você as coloca em convivência com pacientes que não são trans, com profissionais que não são especializados, e isso vai normalizando algo que deveria ser completamente natural e que não é visto assim”, completa.

A costureira Andreia Mel, de São Paulo, aplicou silicone industrial como prótese nos seios, um procedimento não recomendado pela comunidade médica devido aos riscos à saúde. O material se deslocou para os pés de Andreia, o que tem levado a diversos episódios de inflamação.

Ela relata que a procura por atendimento médico tem sido um longo e difícil processo. “Meu silicone está inchado há duas semanas, minha perna está a ponto de explodir. Se eu não fizer escândalo, eu não sou atendida na hora. Os profissionais de saúde precisam prestar mais atenção nas travestis, nós somos seres humanos”, destaca.

Marcelo Prata, do Centro de Cidadania LGBTI de Petrópolis, defende a ampliação dos serviços oferecidos nas unidades de saúde específicas para a população trans.

“Nesses serviços específicos ainda falta ampliar a disponibilização de consultas para outras especialidades, como proctologia, ginecologia e até mesmo a clínica geral, para não ficar focado apenas nas questões hormonais. É importante que a rede de atendimento seja maior”, diz.

A redesignação sexual no SUS

No Brasil, o acesso aos procedimentos para a cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde (SUS) está previsto desde 2008, a partir da publicação da portaria nº 457. Em 2013, a portaria 2.803 ampliou o atendimento para homens e mulheres transexuais.

O documento reúne uma série de diretrizes para a realização do processo no contexto da saúde pública.

O texto enfatiza que a atenção básica tem um papel fundamental no acolhimento e na humanização do atendimento – o que inclui o respeito ao uso do nome social, no combate à discriminação e na sensibilização dos profissionais em relação ao respeito às diferenças e dignidade humana.

Dos serviços de atenção primária, os usuários que desejam realizar a cirurgia de redesignação sexual devem ser encaminhados aos serviços especializados, ainda no contexto do SUS, nas modalidades ambulatorial e hospitalar, para dar andamento ao processo.

As informações são da CNN.

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