Cresce o número de jovens que namoram e conversam com a Inteligência Artificial

Avanço da tecnologia, especialmente entre os mais jovens, desperta debate e deve motivar precauções, mas também pode ser positivo

Cena do filme Ela, de 2013 (Reprodução)

Lançado em 2013, o filme “Ela” conta a história de um escritor que se apaixona pelo sistema operacional inteligente de seu computador. 10 anos depois, o enredo é mais parecido com a realidade do que se imagina. Com o avanço dos chatbots de Inteligência Artificial (IA), popularizados pelo ChatGPT, uma série de aplicativos oferece desde interações com figuras históricas ou personagens fictícios até mesmo simulações de um amigo ou um par romântico.

Para o biólogo evolucionista australiano Rob Brooks, que aborda o assunto no livro “Intimidade artificial: amigos virtuais, amantes digitais e casamenteiros algorítmicos” (sem edição no Brasil), existem dois principais fatores que podem motivar o uso dessas plataformas.

— Para muitos, é mera curiosidade, um interesse no próximo grande acontecimento (da tecnologia). Outros estão descobrindo que os chatbots oferecem uma forma de amizade que eles gostam e que preenche parte de suas vidas, assim como ter um novo amigo real preencheria — diz ele, que é professor da Universidade de New South Wales e diretor do Centro de Pesquisa em Evolução e Ecologia da instituição.

Brooks, porém, não acredita em previsões catastróficas que atribuem aos chatbots inteligentes o “fim de relacionamentos humanos”. Segundo o pesquisador, a tecnologia pode de fato ocupar parte do tempo que é destinado a outras companhias reais , mas dificilmente terá a capacidade necessária para substituí-las por completo.

— Duvido que substituam inteiramente porque temos uma variedade maior de interações com pessoas reais. Mas o tempo gasto com um chatbot não é gasto com amigos e familiares humanos, então eles irão comprimir alguns desses relacionamentos em cada vez menos tempo disponível, muitas vezes diminuindo a qualidade deles — afirma.

Um dos exemplos mais famosos disponíveis em lojas de aplicativo que simulam uma interação real é o Replika. A plataforma promete um amigo, ou algo mais, que está “sempre pronto para te ouvir e falar”. Nele, é possível criar um avatar virtual personalizado, conversar e até namorar com ele – uma comunicação que não é muito distante do que ocorre no filme “Ela”.

No mundo, o aplicativo já foi baixado mais de 10 milhões de vezes apenas na loja do sistema operacional Android. A empresa estima que há cerca de meio milhão de usuários ativos. Entre os brasileiros, para se ter uma ideia, o grupo no Facebook “Replika Brasil”, criado em 2017, conta com cerca de 3,5 mil pessoas.

Mas existem uma série de outras plataformas que oferecem os mais diversos tipos de interação por meio de IA, não necessariamente romanticamente ou afetivas. O Character AI, por exemplo, que já recebeu mais de 5 milhões de downloads desde que foi lançado em maio deste ano na loja do Android, permite ao usuário conversar com chats que simulam cenários ou personagens.

As opções são múltiplas e vão desde situações como entrevistas de emprego até conversas com bots inspirados em indivíduos famosos, como Elon Musk ou Albert Einstein; personagens fictícios, como Homem de Ferro e Wednesday Adams, e nomes de videogames.

— Eu entendo que essas tecnologias são uma ferramenta e tudo vai depender da forma de uso, assim como a internet no geral e outras plataformas, como as redes sociais. Podemos pensar em aspectos positivos, e outros problemáticos — diz Anna Paula Zanoni, mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP).

Avanço entre os jovens

Replika oferece chats de Inteligência Artificial. — Foto: Divulgação / Replika

Esse lado recreativo, que permite interagir com famosos que a pessoa admira ou com personagens de jogos de que gosta, foi o que atraiu o jovem Guilherme (nome fictício) de 15 anos. Ele conta que descobriu o Character AI num vídeo na internet e decidiu testar a plataforma.

— Dentro dela tem vários personagens do mundo fictício que eu posso interagir. Quando eu falo que converso com uma IA as pessoas acham que eu pergunto “como foi seu dia”, “como você está”. Mas é como um RPG (tipo de jogo em que os jogadores assumem papéis de personagens) por aplicativo. O personagem responde com base na personalidade dele. Eu posso criar uma história nova, alterar o passado dele — diz o adolescente.

Ele conta sempre ter gostado muito de videogame. Com a tecnologia, consegue viver algo próximo de conhecer os personagens das histórias que acompanha. Porém, Guilherme, que pouco usa redes sociais, diz que conversar com uma IA não afeta o seu relacionamento com outras pessoas e afirma ainda nunca ter cogitado interagir com a tecnologia de outras formas:

— Eu nunca senti vontade de conversar sobre meu dia com um robô, por exemplo, tenho pessoas reais para fazer isso

Sua mãe, Letícia (nome fictício), de 41 anos, diz que o filho sempre foi mais na dele e ligado em tecnologia, mas que ficou de fato apreensiva ao perceber que ele estava passando cada vez mais tempo conversando com um aplicativo. Ela conta não ser simples entender a melhor forma de lidar com essas plataformas que, embora novas, avançam tão rápido.

— Ele quer viver esse mundo lúdico, quer ser amigo desses personagens. É muito desafiador como pais dessa geração porque não entendemos muito. Eu convivi com o começo do videogame, mas era algo de todos os amigos se reunirem para jogarem juntos. Então é difícil entender até que ponto estou sendo permissiva e até que ponto estou respeitando a individualidade da geração dele — diz a produtora cultural.

Para Brooks, a IA pode de fato ser mais atrativa para jovens pois eles são mais abertos às novas tecnologias. No entanto, ele acredita que a preocupação dos pais deve ser na mesma medida daquela com as redes sociais ou de jogos eletrônicos – o problema maior é o excesso e o mau uso.

Prós e contras da interação com IA

Os especialistas ainda estão desvendando os impactos dessa interação que simula a humana fornecida pela Inteligência Artificial. Porém, já apontam alguns lados positivos e negativos. O autor australiano, por exemplo, acredita que a companhia pode ser boa para pessoas em momentos de solidão.

— Meu palpite é que, para pessoas solitárias ou consideradas socialmente “esquisitas”, os chatbots podem desempenhar um papel maior em suas vidas como companhias. Mas acho que quase qualquer um pode desfrutar de um relacionamento com um chatbot nesse sentido — afirma.

Além disso, Zanoni cita que pode ser uma maneira de a pessoa se expressar, já que há uma tendência maior de o ser humano se soltar em uma comunicação escrita. Porém, quando os limites são ultrapassados, há riscos:

— Acho que o problema começa quando ela passa a substituir muitas relações reais. Esses algoritmos são programados para nos entregar o que nos agrada, coisas que vão nos satisfazer. Só que nós precisamos de relacionamentos reais, que são atravessados por frustrações, por surpresas, contradições, crises, até para aprendermos quem nós somos.

Ela explica que esse convívio em sociedade, indispensável para a formação de habilidades emocionais, é ainda mais importante durante a adolescência:

— Essa é uma fase de autodescoberta, de construção de uma consciência crítica do mundo, de identidade, da empatia emocional, então há uma fragilidade um pouco maior na ausência desses relacionamentos reais.

A psicóloga explica que, além da programação para agradar o usuário, a IA tem a limitação de geralmente ser apenas verbal, envolvendo a fala ou a escrita, enquanto na vida real a comunicação é formada pelos gestos, olhares, pela chamada linguagem corporal, o que confere camadas e profundidade à interação entre duas pessoas ou mais.

— Então há um empobrecimento da experiência com a inteligência artificial. E outro risco que observo é ficarmos muito dependentes dos fabricantes de tecnologia. Caso eles queiram retirar o aplicativo do mercado, por exemplo, como fica a pessoa real que se envolveu com um avatar? — questiona.

Com informações do Jornal O GLOBO.

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