Conheça a história da primeira cacica indígena trans do Brasil

Majur Traytowu, de 30 anos, pertence à comunidade indígena Boe - Bororo, aldeia Apido Paru, da terra indígena Tadarimana, que fica no município de Rondonópolis, Mato Grosso

'Sou reconhecida como a 1ª cacica trans do Brasil, mas não serei a última! Minha vida e existência são resistência'

Majur Traytowu, a primeira Cacica trans do Brasil, fala sobre preconceito e conquistas da sua vida (Acervo pessoal)

“Meu nome é Majur! Mas, antes, já me chamei Gilmar. Não gostava do meu nome, assim como não gostava do meu corpo masculino. Sou indígena LGBTQIAP+, sou do povo Boe-Bororo, que é a minha etnia indígena, somos da região de Rondonópolis, no Mato Grosso. Vivo na aldeia Apido Paru, na terra indígena Tadarimana, onde sou cacica. Lá vivo com meus pais, irmãos, primos e sobrinhos. Tenho quinze irmãos somente por parte de pai e outros cinco por parte de mãe, embora três destes já tenham falecido. Desde a minha infância, já me percebia diferente, não me via como um menino. Não tinha interesse em participar das atividades dos meninos, por exemplo e, por isso, temia o preconceito dentro e fora da nossa aldeia.

Desde muito novinha fui me percebendo como mulher cada vez mais e, com isso, passei a aprimorar o conhecimento sobre a minha sexualidade. Passei a ler tudo sobre este assunto na Internet, num celular velho que eu tinha.

Na nossa aldeia tem, ao todo, apenas 11 casas e, devido as condições de trazer o material da mata, que são folhagens muito pesadas, não conseguimos construir para fazer mais casas para a nossa aldeia, que são todas feitas de palha. Porém, vale lembrar que não somos isolados. Dá para chegar até lá indo pela estrada de chão. O acesso é bom e dá até para ir de carro. A aldeia fica a 220 quilômetros da capital Cuiabá e fica a uns 60 quilômetros do município de Rondonópolis, no Mato Grosso.

Aos 11/12 anos, passei a compreender melhor a minha atração por meninos e, só mais tarde, passei a me entender e me enxergar totalmente como uma mulher. E as redes sociais tiveram um papel muito importante nesse processo, pois foi por meio delas que pude encontrar e conhecer melhor o mundo LGBTQIAP+ , tanto indígena como não indígena, onde eu pudesse, por meio da troca de experiências via internet, compreender melhor a minha identidade de gênero e também a minha sexualidade. Por parte da minha família, sendo todos eles indígenas, sempre fui bem aceita e acolhida, assim como também por outras pessoas de meu povo. O preconceito, neste caso, veio de fora mesmo. Sempre tem um olhar torto, um risinho fora de hora e também a hostilidade. Muitas vezes ele está num simples olhar carregado de amarras e preconceitos em relação a minha pessoa, simplesmente por eu ser diferente aos olhos dos outros. Com o tempo, fui me conhecendo melhor e aprendi a fazer com que minha voz de mulher trans fosse ouvida por onde eu fosse.

Com o passar dos anos e com o envelhecimento do meu pai, que já está muito idoso e doente, assumi há pouco mais de um ano, o posto que antes era dele: me tornei cacica! Sendo a primeira cacica trans que se conhece no Brasil! Sou a cacica da aldeia Apido Paru e, paulatinamente, passei a ser reconhecida também como liderança política e cultural no conjunto de aldeias que forma a terra indígena onde vivo e já como uma mulher trans. Antes disso, meus pais tomavam as decisões juntos e para mim não foi novidade ser cacica, porque já participava de tudo e, desde pequena, aprendi como liderar juntos deles.

Por ser filha de um dos maiores líderes e chefes culturais do povo Boe-Bororo, desde cedo escutei os ensinamentos do meu pai e tento até hoje absorver um pouco de seu vasto conhecimento como um ancião indígena. Aprendi com ele, por exemplo, a conhecer os remédios e as ervas da floresta, a fazer alguns dos nossos mais sofisticados ornamentos e artesanatos, a executar e cantar os lamentos tradicionais do nosso povo, além de ter herdado toda sua força e resiliência. Mas, sobretudo, aprendi com ele a reconhecer os limites do meu conhecimento e ter humildade diante da riqueza que é a cultura de meu povo.

Sou super tecnológica e uso meu celular para fazer tudo hoje em dia, inclusive, proteger a floresta e a aldeia onde vivemos. Junto às lideranças juvenis e os demais aqui da nossa aldeia, que nos ajudam na preservação da nossa floresta.

Eu e meu povo usamos trajes típicos indígenas quando temos algum ritual ou cerimônia indígena na nossa aldeia. Quando estamos muito alegres ou em momentos fúnebres nós também usamos esses trajes. Mas, no dia a dia, usamos roupas normais mesmo, como de homem branco.

Me considero umuma protetora fundamental da floresta! Tento, ao máximo, preservar as matas e os animais da região onde vivo, pois sabemos que dependemos das matas e dos rios para a nossa sobrevivência e dos demais indígenas da nossa aldeia. Um dos casos mais graves que acontece na nossa região é a extração ilegal de madeira. Antigamente, tinha muita e os madeireiros queriam entrar de todo jeito, só que, juntamente ao meu povo, não deixamos. Sobre a extradição da madeira, uso minhas redes sociais para denunciar e também chamar atenção para este tema: preservar a floresta onde vivemos. Assim, combatemos essa invasão. Com isso, hoje vivemos, basicamente, da caça e da pesca. E plantamos também batata doce, mandioca, mamão e abacaxi. Na nossa aldeia plantamos o básico para a nossa sobrevivência mesmo. Lá também caçamos animais como: tatu, queixada, caititu, paca, quati para comer e sobreviver. E pescamos também: pacu, peraputanga, jau, pintado, peixe cachorro, piranha, dourado e o que mais cair na rede de pesca.

Uso muito minha rede social para mostrar a realidade da minha aldeia e do meu dia a dia. Como sou a filha de um chefe cultural, prezo muito por esse lado da valorização cultural também, além da preservação. Como cacica, podemos nos comunicar com oficiais ou fiscais da nossa região usando o celular e a Internet, que nos ajudam muito, porque quando a gente sabe de alguma ilegalidade dentro da nossa reserva ou da nossa floresta a gente denuncia imediatamente. Ou fazemos também um comunicado oficial aos oficiais da Funai. O celular é o meio de comunicação mais viável hoje para mim. A maioria dos jovens daqui da nossa aldeia Boe Bororo também vigiam e protegem a nossa floresta.

No momento, estou em meio a um tratamento hormonal, tomando muitos remédios para fazer, finalmente, a transição de gênero. Pretendo, um dia, modificar totalmente o meu corpo para ele ser visto como o de uma mulher. Quero colocar seios também. Uso hormônios desde o ano passado e, cinco meses depois, tive que parar o meu tratamento por não ter condições financeiras para comprar todos os remédios. Atualmente, estou solteira e, recentemente, tentei me relacionar com um rapaz, também indígena, mas infelizmente, não deu certo.

Meu sonho é poder ajudar na construção de mais casas na nossa aldeia, já que as folhagens que usamos nessas bioconstruções são muito pesadas. E também luto para termos um barco para nos ajudar a atravessar o rio na época de cheia na região e facilitar na ronda que precisamos fazer no território onde vivemos.

Hoje sei que sou reconhecida como ‘a primeira cacica trans do Brasil’, mas sei que não serei a última! E espero que não seja mesmo! Minha vida e existência são, desde sempre, resistência. Primeiro por ser indígena e depois por ser uma mulher trans. Tudo isso é, de fato, uma forma de ativismo! Minha luta, hoje e sempre, é pela visibilidade dos indígenas LGBTQIAP+ dentro e também fora das suas aldeias.”

Com informações da Marie Claire.

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