Chefes do jogo do bicho são presença marcante em 40 anos de Sambódromo

Foi no local, a partir de meados dos anos 1980, que eles ganharam mais visibilidade

Símbolo de uma Era: o bicheiro Castor de Andrade, patrono da Mocidade, em 1990 — Foto: Arquivo

A relação do jogo do bicho com o carnaval carioca é bem antiga. Pelo menos desde que Natalino José do Nascimento, o lendário Natal, viu nascer a Portela na casa de seu pai e depois investiu parte do dinheiro que ganhou na contravenção para estruturar a escola, esses dois mundos andam sempre juntos.

Mas foi no Sambódromo, a partir de meados dos anos 1980, que os bicheiros ganharam mais visibilidade. A passarela com ares de monumento construída a partir do projeto de Oscar Niemeyer foi — e ainda é — palco de momentos marcantes da cúpula da contravenção sob os holofotes.

Um dos protagonistas absolutos nessa história é Castor de Andrade, o patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel. Suas aparições na avenida eram sempre marcantes e nada discretas. No desfile de 1991, em plena concentração da escola antes de entrar na avenida, castor comemorou seus 65 anos. Teve bolo e vela, sim. Mas teve também “casquinhas de siri, mousse de lagosta, camarão ao molho tártaro, mexilhões e patinhas de caranguejo ao vinagrete e surubim com torradas”, como descreve a matéria publicada por O GLOBO em 13 de fevereiro daquele ano.

No carnaval de 1987, o Sambódromo viveu clima mais tenso envolvendo os principais chefes da contravenção. Tudo por conta de uma disputa pelo comando da Liga Independente das escolas de Samba (Liesa). De um lado, Aniz Abraão David, o Anísio, patrono da Beija-Flor de Nilópolis. Do outro, Luís Pacheco Drummond, o Luisinho, presidente da Imperatriz Leopoldinense, e Aylton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, da Unidos de Vila Isabel.

Os três “desfilavam” pela avenida com desenvoltura dando demonstrações de prestígio e poder. entre um desfile e outro, os personagens do imbróglio não se furtavam a dar entrevistas com direito a farpas contra os adversários. A situação foi definida à época, como um verdadeiro “tititi”, alusão ao enredo Tititi do Sapoti, Estácio de Sá. No fim do processo, como quase sempre, eles se entenderam.

—Essa relação que o bicho passa a ter com as escolas de samba eu acho que tem três dimensões. Uma primeira dimensão é certamente do controle maior do território, porque se você consegue uma inserção maior numa escola de samba ligada a um determinado território, a uma determinada comunidade, o seu controle desse território se fortalece e de uma maneira que não é exclusivamente pautada numa imposição violenta, mas de uma maneira até assistencialista, de admiração. E o segundo processo, ligado ao primeiro, é de uma lavagem de imagem, status. Eles ganham uma projeção inclusive midiática, com relações profícuas com instâncias de poder, da mídia e de instituições de cultura do Rio. E ao mesmo tempo tem a dimensão do afeto. A família Abraão David, por exemplo, não inventou que ia dominar a Beija-Flor, o Anísio tem relações com a escola desde que ela é fundada — diz o professor de História, escritor e compositor Luiz Antônio Simas.

Em maio de 1993, os chefes do Jogo do Bicho se viram afastados dos holofotes e do samba. Em decisão histórica, a cúpula da contravenção foi condenada. A maioria passou de um a dois anos na prisão. Ficou famosa a entrevista em que Castor, de volta à Avenida, foi perguntado pelo repórter por que andara longe dos desfiles nos nos dois anos anteriores. Sorridente e sincero, o bicheiro respondeu: “Porque eu estava em cana!”

Nos anos 2000, uma sequência de mortes violentas na esteira de disputas por território marca algumas das mais importantes famílias do Jogo do Bicho. Mesmo assim a presença dos patronos é reverenciada na avenida. No desfile de 2005, o Salgueiro levou as imagens de Waldemir Paes Garcia, o Miro, e seu filho Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, num telão em um dos carros que fechava a escola. A foto dos dois também podia ser vista na camiseta de uma das alas. Os dois haviam morrido no ano anterior. Miro de causas naturais, Maninho assassinado a tiros. Na concentração, integrantes da escola choraram pela ausência dos dois na hora dos fogos de artifício.

A predominância das famílias ligadas ao Bicho no comando de algumas das principais escolas que desfilam no Sambódromo sobrevive ao tempo. Rogério Andrade, que herdou o espólio de Castor, segue dando as cartas com mão de ferro na Mocidade.

Na Imperatriz Leopoldinense, campeã do carnaval de 2023, a dinastia Drumond segue absoluta: a filha, Cátia Drumond, é a presidente. Na diretoria estão ainda Vinícius, João Felipe, Iago e Simone, todos da família, mas não necessariamente ligados à contravenção.

Da mesma forma, na Vila Isabel, o presidente é Luizinho Guimarães, de apenas 25 anos, filho do bicheiro Capitão Guimarães. Ele foi personagem do último capítulo da série Vale o Escrito, da Globoplay que trouxe à luz detalhes impressionantes da contravenção carioca, incluindo a relação dos bicheiros com o carnaval.

Na Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), entidade criada meses após a inauguração do Sambódromo e que, portanto, também completa 40 anos em 2024, o empresário Gabriel David, de 26 anos, filho de Anísio, que também afirma não se identificar com o universo da contravenção, ocupa o cargo de diretor de Marketing da entidade.

— O fundamental é a gente entender que a escola de samba é uma instituição complexa. Então você tem a grana do bicho, tem o domínio do bicho, mas escola de samba é uma instância comunitária que dá sentido à vida daquela senhora que desfila como baiana, para aquela menina que desfila como passista, para aquele músico excepcional que não tem acesso a uma musicalidade mais formal e acaba sendo um grande ritmista. Então é complexo, não dá pra gente chegar e dizer que tem que acabar porque tem dinheiro disso, daquilo. É um absurdo.

Com informações do Jornal O GLOBO.

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