Busca por lugares supostamente ‘secretos’ movimenta redes

Points da cidade são apresentados como 'escondidos' e 'pouco conhecidos', criando sentimento de exclusividade e atraindo a ira do público 'raiz'

Praia do Secreto, no RJ (Divulgação)

Se você passa algum tempo nas redes provavelmente já viu vídeos de influencers indicando blocos de carnaval, bares, restaurantes, baladas ou pontos turísticos que seriam “secretos”, “escondidos” ou “pouco conhecidos”. E, se você é uma pessoa que costuma circular por sua cidade, já deve ter reparado que esses adjetivos, muitas vezes, não correspondem à realidade. O lugar em questão é “secreto”, mas tem perfis em todas as redes sociais possíveis. É “escondido”, mas fica em localização privilegiada e exibe um letreiro bem visível em sua fachada. É “pouco conhecido”, mas está sempre cheio.

Apresentar points da cidade como se fossem segredos bem guardados é uma tendência entre os creators (produtores de conteúdo). A ideia de “exclusividade” contaminou as resenhas, com a palavra “secreto” virando chamariz no fluxo frenético das redes. O fenômeno se alastra na gastronomia, no turismo, no carnaval. De certa forma, quase todo mundo já entrou nessa onda, vangloriando-se de descobrir aquele point que ninguém mais conhece. Mas tem quem esteja cansado dessa lógica de consumo.

—Sou uma crítica ferrenha desse negócio de secreto — diz Natalia Olliveira, administradora da página @oquefazernorio, que dá dicas de programas de forma bem-humorada no Instagram. — Hoje em dia isso é um grande clickbait (literalmente, uma isca para caçar cliques), porque é difícil algo ser desconhecido. Já vi creator falar que a Joatinga (no Joá, Zona Oeste do Rio), uma praia em que não se encontra uma faixa de areia vazia, era secreta. Acho que isso vem da falta de conhecimento de quem produz conteúdo, mas também de um desejo de ser o portador de um grande segredo.

O “secreto” não virou uma fantasia mercadológica por acaso. Professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP e autor do livro “Viver é melhor sem ter que ser o melhor” (Sextante), Daniel Martins de Barros explica que o termo gera uma “atenção automática” em quem está ouvindo.

— Temos um cérebro que evoluiu em um contexto de escassez, em uma História na qual não havia recursos suficientes para todos — diz. — Então, quando ouvimos que uma coisa não tem para todo mundo, prestamos atenção.

‘Fenômeno positivo’

Giulia vê o fenômeno como “extremamente positivo”, já que estimula um espírito desbravador nas pessoas. Com uma peculiaridade: na era do compartilhamento em massa nas redes, as novas gerações fazem questão de dividir suas “informações privilegiadas”.

— Não podemos esquecer que, hoje em dia, todos se consideram, em menor ou maior escala, criadores de conteúdo — diz a jornalista. — Nessa lógica, ser a pessoa cool, que descobre o novo, tem um valor alto. Diferentemente dos hipsters de dez anos atrás, não queremos guardar esse segredo só para nós. Com o aumento de páginas nas redes sociais que apresentam descobertas pela cidade, reviews de restaurantes, influencers etc., descobrir um lugar que é “secreto” te diferencia nesse meio.

O ciclo desnuda um paradoxo da era da hiperinformação. Com tanto conhecimento disponível on-line, o creator precisa garimpar novas referências para se destacar na multidão. Só que, ao compartilhar o lugar “secreto”, acabam tornando ele menos exclusivo. Seus seguidores são estimulados a exibir suas próprias experiências no espaço, gerando ainda mais buzz em torno dele. No fim, um número gigantesco de pessoas acaba compartilhando as mesmas coisas “desconhecidas”.

— As pessoas querem se sentir as únicas a saberem sobre o lugar, mas se chegar lá e estiver vazio não gostam — ironiza Natalia Olliveira.

Blocos secretos

Publicitária cofundadora da White Rabbit, agência de exploração de tendências, Luciana Bazanella acha que o próprio termo se esvaziou, tornando-se uma espécie de “Lego perfeito” (pode se encaixar em qualquer coisa) que nada a tem a ver com a realidade. Muitos adeptos talvez só estejam usando “secreto” como sinônimo de um programa “diferente”, “singular” ou “fora da caixinha”.

— Na publicidade, a tendência é sempre dizer o contrário do que a pessoa está sentindo — diz Luciana Bazanella. —Quando tem algo que é hiperexposto, você vai dizer que é para poucos, para o seu alvo se sentir muito especial. E esse especial é muito fácil de fabricar.

A busca pela diferenciação entrou na pauta até mesmo de eventos de caráter democrático, como o carnaval. Em 2024, mais uma vez, a folia verá uma busca intensa pelos blocos piratas — aqueles que decidem permanecer “no escuro”, divulgando horário e local apenas na hora da saída (e, em geral, só para iniciados). Os organizadores garantem que é para festejar com mais segurança, já que não têm estrutura para receber muita gente. Alguns também já se apresentaram como uma crítica a uma suposta falta de incentivo do poder público ao carnaval.

A polêmica sobre esses coletivos se arrasta há anos, especialmente no Rio. Os detratores falam em elitismo. Já os entusiastas passam o carnaval inteiro trocando informações para encontrar o “bloco secreto” da vez. Ou acessando freneticamente os perfis que registram em tempo real o caminho do Santo Graal.

O ator e escritor Gregório Duvivier, que toca trombone em um desses coletivos que não divulgam sua existência, admite que a ideia de um bloco exclusivo seria “tosquíssima”. Para ele, não é uma questão de fazer segredo, mas de se manter espontâneo, sem a pressão das redes.

— As pessoas chamam de secreto qualquer bloco de que elas não ficaram sabendo — diz Duvivier. —Só que, frequentemente, nem o próprio bloco sabia que ia sair. Ou onde ia sair.

Afinal, indaga Duvivier, por que a obsessão em localizar o paradeiro do bloco improvisado e caótico, com tantos outros que ensaiam, divulgam e saem na hora?

Novas antiquidades

As redes são capazes de movimentar grandes fluxos migratórios e expandir o perfil de público de um espaço. Basta um vídeo sobre o point para que a paisagem humana se transforme por ali. Não raro a democratização — ou gentrificação, dependendo do caso — atrai a ira dos frequentadores “raiz”. Em muitos casos, o “secreto” era só um lugar nichado que aos poucos vai se tornando mainstream.

Habitué da nada secreta feira de antiguidades da Praça XV, no Centro do Rio, a analista comercial Camille Lima, reparou que os preço dos produtos estão subindo e as barracas se desvirtuando do conceito original. Ela já definiu os culpados: os influencers e creators que hyparam o lugar.

— Está acontecendo uma padronização do público, inclusive com o mesmo tipo de vestimenta de blogueiras, como se fosse um pré-requisito para uma foto super cool no lugar queridinho do momento — diz a carioca, de 25 anos. — Com essa nova turma frequentando a praça, o que antes tinha um preço superacessível agora é um espaço tomado por objetos de primeira linha e novos, afastando quem estava acostumado a comprar por lá.

‘Pra todos, mas não pra qualquer um’

Em meio ao esvaziamento do termo “secreto”, há estabelecimentos que decidiram levá-lo ao pé da letra. São Paulo, por exemplo, é campeã de bares que se proclamam herdeiros do speakeasies — as casas clandestinas que vendiam álcool durante a proibição americana nos anos 1920, a chamada Lei Seca.

Agora, em vez de evitar a polícia, esses lugares buscam enganar a grande massa. Não trazem informações na fachada e ocultam-se no interior de outros estabelecimentos, atrás de cozinhas ou em rooftops.

O funcionamento lembra o de um clube para membros. Muitos só liberam a entrada com a senha do dia. Outros informam endereço apenas após a confirmação da reserva. “É para todos, mas não pra qualquer um”, diz o slogan do Iscondido Bar, na capital paulistana.

Também em São Paulo, o Sweet Secrets usa uma loja de doces como disfarce durante o dia. Os donos criaram uma lista de 100 pessoas, que podem visitar o espaço ou convidar outros amigos. Os privilegiados recebem a chave — literal — que dá acesso a um ambiente exclusivo. A partir desse ponto, fotografias são proibidas.

Só que o lugar viralizou rapidamente no TikTok e os donos passaram a receber diariamente milhares de pedidos pelo Instagram. A influencer Patrícia Branco, do perfil Dicas de Viagem da Pati, gravou um vídeo bem-humorado relatando a “humilhação” de ter sido barrada no bar. “Sinceramente, acho que (o bar) não vale a burocracia”, avaliou.

— Tantas vezes nos deparamos com promessas do secreto que, ao final, descobrimos que de segredo não tinha nada —diz Ariel de Souza Carvalho, responsável pelo perfil @riodesegredos no Instagram. — Mas as cidades podem nos surpreender. Têm segredos que nem imaginamos. Basta olhar com mais carinho para as suas histórias, as boas e as ruins.

No seu perfil, o guia de turismo mostra curiosidades pouco conhecidas por trás de um nome de rua, uma sigla no bueiro, uma cruz no meio de uma praça ou um estacionamento subterrâneo.

— O segredo está no detalhe (do cotidiano), não no clichê — diz ele. — Quanto mais sabemos de nossa cidade, mais criamos conscientização, mais preservação, mais conhecimento, mais amor. E, talvez, seja este o grande segredo!

Com informações do Jornal O GLOBO.

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