Brasileiro abre o jogo sobre cativeiro nas mãos da máfia chinesa

Em busca de emprego, jovem de 24 anos viajou para a Ásia a convite de empresa de fachada e acabou refém de criminosos e terroristas em Mianmar

Tudo começou com o que parecia ser uma oferta de emprego em Bangkok, na Tailândia, com pagamento em dólar. A Nathália, uma amiga de muitos anos, viu o anúncio numa rede social e vislumbrou que o trabalho em telemarketing, fora do país, daria uma vida melhor para ela e as filhas pequenas. Eu também caí na história. Mal imaginávamos que nosso destino final era o inferno.

Como ela tinha receio de ir sozinha, deixei tudo para trás e fui junto. As crianças ficaram com a mãe dela. Eu estava certo de que nada daria errado. A Nathália é uma das pessoas mais responsáveis que eu já conheci. Mas o fato é que nós dois fomos enganados.

Com passagens nas mãos, pegamos um avião em São Paulo e, no aeroporto da Tailândia, fomos recepcionados pelo grupo da suposta empresa contratante. Isso foi em julho deste ano. Um guarda nos esperava e passamos por trâmites alfandegários à parte. Não nos perguntaram nada. Carimbaram nossos passaportes e nos deixaram ir. Pode parecer lógico achar tudo um pouco estranho, e eu achei, mas nunca tinha saído do Brasil. Podia ser daquele jeito.

Deixamos o aeroporto e fomos levados até um carro, que aguardava do lado de fora. Começava ali uma viagem que duraria cinco horas, com pessoas que sequer falavam inglês. Eu mal identificava o idioma. Naquele momento, como o destino combinado inicialmente era Bangkok, comecei a ficar desconfiado. Paramos numa cidade chamada Mae Sot. Só mais tarde, eu descobriria que íamos para Mianmar, país onde se fala o pouco conhecido birmanês.

A Nathália ligou para os responsáveis pela empresa para entender o que estava acontecendo. A resposta foi que era para não nos preocuparmos, que estava tudo bem.

A partir dali, houve uma sequência de acontecimentos trágicos. Os celulares foram proibidos. Àquela altura, já não podíamos cogitar fugir, porque ficaríamos no meio do nada, num lugar onde não conhecíamos ninguém, sem dinheiro e sem falar o idioma. A ficha caiu: éramos reféns. Foi quando, do carro, passamos para uma picape com homens armados. Sou do Rio de Janeiro, tentei manter a mente calma. A Nathália se desesperou.

‘Me sinto vazio’: Patrick conta que ainda vive o trauma, mesmo após o retorno ao Brasil — Foto: Hermes de Paula / Agência O GLOBO

Legião de enganados

Não era para menos. Durante o trajeto, tivemos que atravessar um rio e notei que não havia mais imagens do rei da Tailândia nas casas. Era um lugar mais pobre. Só quando notei a bandeira diferente vi que sequer estávamos mais no mesmo país.

À medida que avançávamos, passamos por pontos de controle de imigração; e ninguém nos parou. Da Tailândia a Mianmar, onde ficaríamos por três meses passando pela pior experiência das nossas vidas, a guarda de fronteira parecia “comprada”.

Cheguei ao KKPark, uma espécie de conjunto residencial (algo como o Minha Casa Minha Vida do Brasil, mas em proporções maiores), uma fortaleza de rebeldes e terroristas. Mianmar existe encravada numa guerra civil. Para onde se olhava, havia “soldados” com fuzis ou blindados. A máfia chinesa ditava as regras por lá. Nos colocaram num quartinho com quatro camas beliche e outros oito brasileiros, igualmente enganados. Em todo o complexo, havia pessoas traficadas de etnias diferentes, inclusive nativos e tailandeses.

Os brasileiros tinham chegado quase uma semana antes da gente, vindos do Ceará. Os criminosos aguardavam a nossa chegada: formaríamos um grupo para aplicar golpes cibernéticos sob o jugo da quadrilha. O esquema nos obrigava a trabalhar 15 horas por dia por longos meses.

Sem colchão: dez brasileiros dividiam 8 camas de beliche no mesmo quarto — Foto: Arquivo pessoal

Fomos obrigados a criar perfis falsos e forjar vínculos amorosos com americanos que seriam as vítimas. Os alvos eram pré-definidos por eles numa lista. O “trabalho”, da nossa parte, era às cegas, tínhamos que cumprir as ordens. (Entre os algozes estaria André Luis Sales Cunha, de 24 anos, que se identifica nas redes como “velho da lancha”, preso pela PF no Aeroporto de Guarulhos em 5 dezembro. Ele é o homem que enganou e intermediou a ida de Patrick, Nath

Naquele momento, não sabíamos de nada, apenas que seríamos submetidos a trabalho forçado por pelo menos seis meses. E libertados, ao fim, se arrecadássemos o dinheiro que exigiam. Mas mesmo isso era mentira. Lá, alguns estavam detidos há anos.

O dia a dia era degradante. Não tínhamos vaso no banheiro, fazíamos as necessidades fisiológicas num buraco no chão. Davam três “punhados” de comida por dia e pagávamos pela água. Do quarto, só saíamos para trabalhar sob vigilância.

Quem não batia a meta de golpes apanhava. Eram socos, pontapés, surras com pedaços de pau. Nossos celulares até podiam ser usados, talvez para não despertar a desconfiança de parentes sobre um desaparecimento, mas os aparelhos passavam por uma varredura. Uma vez por dia, checavam nossas mensagens e ligações e questionavam se apagássemos algo. Era indicado que qualquer sinal diferente para a família podia levar a uma prisão que tinham lá, ou mesmo à morte.

O KKPark: complexo no estilo “Minha Casa, Minha Vida”, que criminosos tomaram e transformaram em fortaleza do crime em Mianmar — Foto: Arquivo pessoal

Ainda sem ‘nascer de novo’

Eu, que nunca tinha feito nada errado, estava sendo obrigado a enganar pessoas, sob ameaça de castigos físicos. Acontecia muita coisa: torturas, mulheres violadas, relatos de tráfico de órgãos… aquele lugar era, de fato, o inferno na Terra. Por incrível que pareça, parte dos brasileiros presos acreditava que seria libertada e ainda sairia com alguma grana.

Mas nunca vou esquecer de uma menina asiática que, apesar de todas as adversidades, tinha sempre um sorriso no rosto. No dia em que o brilho nos olhos dela se apagou, soube que ela tinha sido estuprada. Era parecia vazia por dentro. Vi que precisava fazer alguma coisa para fugir dali.

Eu tinha dois celulares e me arrisquei a usar um deles escondido. Registrei o que pude e mandei para um conhecido nos EUA, que fez a denúncia chegar a um departamento americano. Em vão, nessa primeira tentativa.

Convenci outros brasileiros e fizemos contato com a Embaixada do Brasil. Um dos amotinados me denunciou. Eu e os outros brasileiros passamos a sofrer todo tipo de ameaça. Decidi contar para a minha família, e a minha mãe atravessou um estresse tão forte que foi internada três vezes.

Sem esperança nas autoridades americanas ou brasileiras, procurei uma ONG de combate a tráfico humano e uma emissora de TV brasileira. Depois que o caso veio à tona, a pressão se tornou insuportável. Como bode expiatório, embora não tivessem conseguido provas de que eu vazara as informações, passei pelos castigos mais implacáveis.

De repente, agentes da Interpol entraram em contato comigo pelo “celular não oficial”. Passei a contar para eles a rotina diária no KKPark. O governo de Mianmar foi acionado e negociou com os terroristas.

Eles aceitaram libertar dez de uma lista de 15 brasileiros mantidos em cárcere e sob tortura. Sem utilidade para os chefões, fomos entregues aos terroristas que faziam a segurança do parque. A equipe de imigração de Mianmar nos resgatou e nos levou para a delegacia. Voltamos aos maus-tratos dispensados a ilegais, e não a atenção dada a vítimas de tráfico humano. A cela com 30 pessoas não tinha água.

Somente após o governo brasileiro se manifestar, fomos levados até o embaixador brasileiro em Agon, capital de Mianmar. Foi um alívio quando ele nos recebeu com passagens de volta para casa. Eu e Nathália voamos de volta para São Paulo. Ela reencontrou os filhos.

Nathalia recebida com emoção pela família ao chegar ao Brasil — Foto: VIVA ABC / Reprodução

Eu ainda não sinto que “nasci de novo”. Ficou a sensação de faca no pescoço e, às vezes, estou emocionalmente pior do que quando estava lá. É como se eu estivesse vazio. Minha família foi destruída, não tenho emprego, não estudo e não vejo perspectivas.

Uma das poucas alegrias recentes foi ter decidido conhecer um irmão, que vive no Paraná. Quebrado e perdido, estou revendo valores de família e senti a necessidade de encontrá-lo. Do cárcere, ficou a dor e um caderno inteiro de poesias que escrevi para fugir por alguns instantes daquela realidade.

* Patrick da Silva Palma Lopes, de 24 anos, em depoimento a Arthur Leal.

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