‘A mãe é menino’: transexuais contam como ensinaram sobre identidade de gênero aos filhos e netos

Atacados moral e até fisicamente ao longo dos anos, pais e mães trans saem dos armários e lutam pelo direito à representação social na vida de filhos e por papel próprio no mercado de trabalho

Ela se apresenta como pai e avó — e não é por engano, é um manifesto. Sara Wagner York, de 47 anos, foi pai aos 16, quando frequentava uma igreja evangélica que oferecia “terapia de conversão”, a chamada cura gay a adolescentes.

E foi avó aos 40, já firme no propósito de ter o nome e o gênero com os quais sempre se identificou. Hoje, ela é pai e avó. É a bandeira do protagonismo que Sara conquistou numa sociedade que avança no debate sobre diversidade, mas ainda invisibiliza muitas famílias formadas por transexuais.

Foram mais de três décadas entre se entender e ocupar seu real lugar no mundo.

— Eu já me entendia como travesti, mas um colega dizia que, se eu não aceitasse Jesus, ia morrer no inferno. Fui para a igreja buscando uma forma de estar no mundo. Mas a mesma instituição que promoveu a relação com a mãe do meu filho como uma possibilidade de “cura” foi a que separou minha família — conta Sara, que é professora da Uerj e especialista em gênero e sexualidade, lembrando que foi expulsa da igreja.

A partir daí, foi uma longa batalha para estar perto do filho, com quem conviveu até os 5 anos. Depois, a mãe da criança casou com um missionário, que a registrou em seu nome, e desapareceu. Ao relembrar tudo que passou para se reconectar com o menino, Sara constata o quão forte é o imaginário de que pessoas trans não têm o direito de ter filhos:

— Fui a todos os lugares possíveis atrás desse filho, e a vida foi ficando insuportável. Usei drogas, fui morar na rua. Foram 15 anos de muita dor . Não se ensina a pessoas como nós a ser pai ou mãe, a se relacionar com sua prole. Os direitos reprodutivos de pessoas trans são negados até hoje.

Sara não encontrou o filho, mas ele a encontrou. Ela trabalhava em Londres, como cabeleireira, e um dia atendeu no salão a cantora Elza Soares, que faria um show na capital britânica. Uma foto das duas juntas viralizou em uma rede social. Sara recebeu uma mensagem: “Ligar no Brasil com urgência”. Só telefonou uma semana depois.

— Eu pensava: “Mas não tenho ninguém no Brasil”. Porque uma das coisas que fiz para viver foi matar esse filho dentro de mim, esquecer que ele existia — conta. — Quando liguei, disse: “Aqui é Sara York, de Londres”. E a pessoa do outro lado: “Bença, pai, que saudade da sua voz e do seu cheiro”. Ali morri para a tristeza e acordei para a vida.

Sara voltou para o Brasil. Mas, no país apontado pelo 14° ano seguido como o que mais mata pessoas trans no mundo, segundo relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a alegria do reencontro foi também balde de água fria:

— Foi um abraço naquele menino de 5 anos, mas que agora media 1,90m. Durou a eternidade de seis segundos, gravados por uma amiga.

Sara Wagner York, de 47 anos, pesquisadora e especialista em gênero e diversidade, se apresenta como “pai e avó”. Na foto, ela com o filho de 31 anos e o neto de 7. — Foto: Arquivo pessoal

Igualmente rápida foi a transfobia. Ela ouviu dois homens dizerem, diante da cena: “olha o que os viados estão fazendo com o mundo”. No dia seguinte, durante um passeio com a cria em Copacabana, foi alvo de outra violência, quando um homem lhe atirou uma pedra. E Sara, que pretendia abrir um salão em Goiânia, onde o rapaz mora, desistiu. Hoje, também não anda tanto quanto gostaria com o netinho em público. As regras sociais têm baixa tolerância para uma pessoa trans com uma criança na rua. “O quanto isso é possível de ser pensado e aceito socialmente?”, costuma se perguntar.

Busca pela ‘normalidade’

Relatório da Antra de janeiro mostra que ao menos 131 pessoas trans foram mortas no país em 2022. A expectativa de vida dessa população é de 35 anos, menos da metade dos 77 anos da população brasileira. Um contexto violento para o debate complexo sobre composições familiares múltiplas.

— Eu tinha 3 anos quando vi a Roberta Close pela primeira vez no programa do Faustão, num domingo. E falei: “Quando crescer vou fazer a mesma cirurgia, mas o inverso”. Minha mãe ficou assustada — diz Cristiano Henrique, de 39 anos, que, nos anos em que tentou se encaixar no padrão cis-heteronormativo, engravidou. — Me sentia um menino grávido. A cabeça não aceitava o que o corpo dizia ser. Levou muito tempo até um se ajustar ao outro.

Quando a filha tinha 15 anos, e ele 32, Cristiano iniciou a transição social. Na mesma época, a personagem Ivana, da novela “A força do querer”, escancarava em rede nacional a existência de homens trans e o processo de afirmação de gênero.

— Minha filha ainda me chama de mãe — afirma Cristiano. — Na época foi difícil de lidar. Eu queria ser uma pessoa “normal”. E era, dentro da minha normalidade. Tentei ser mulher, mas claro que não deu certo.

Dono de uma barbearia no Itaquera, Zona Leste de São Paulo, Cristiano tem um neto de 4 anos, que mora com ele e a mulher, Cynthia. O menino chama Cristiano de “pai”.

— Minha geração acredita que mãe é mulher, e pai é homem. Mas por que não posso ser um homem que coloquei uma criança no mundo? — questiona. — Tudo que o menino pergunta, eu respondo. Quanto mais naturalidade, mais chance de a criança crescer sem preconceitos.

O professor e consultor em diversidade Noah Scheffel, de 36 anos, contou há seis anos para a filha de 9 sobre sua identidade de gênero.

— Ela já estava acostumada a conviver com perfis diversos de pessoas. Mas eu tinha medo da reação. Um dia, na volta da escola, estacionei o carro, tomei coragem e perguntei: “Você acha que a mãe parece mais com menino ou menina?”. Ela ficou meio sem jeito, mas respondeu “menino”. Minha expressão de gênero já era masculina, na aparência, nas roupas. “Então, a mãe é menino”, eu disse — lembra.— E ela me respondeu que eu precisava de um nome masculino. Perguntou que nome ela teria se tivesse nascido menino. Respondi “Noah”, e ela disse que então eu poderia ficar com o nome de menino dela. Ser mãe ou pai são papéis que não deveriam estar atrelados a gêneros. Têm a ver com cuidado e responsabilidade com a criança — afirma.

Reflexo da sociedade

No trabalho, apesar de anos na empresa, Noah também sofreu ataques. Passou por crises de pânico, ansiedade, depressão e até ideação suicida, que culminaram em uma internação psiquiátrica. Quando saiu, criou a própria empresa, EducaTRANSforma, voltada à capacitação e consultoria em empregabilidade para pessoas trans nas áreas de tecnologia e inovação.

O momento é de conscientização e sensibilização, mas ainda falta ação, diz Michelle Levy Terni, CEO e cofundadora da consultoria “Filhos no currículo”, especializada em programas de parentalidade corporativos e na rede de apoio de quem concilia filhos e carreira.

— Fala-se muito sobre direitos LGBTQIA+ no geral, mas ainda não há grande demanda nas empresas para falar sobre a intersecção deste tema com a parentalidade — afirma Michelle, citando alguns primeiros passos, como a divulgação de famílias plurais nos canais corporativos e a aposta em programas afirmativos para contratação de pessoas trans. — Ainda há um caminho a ser percorrido.

As informações são do Jornal O GLOBO.

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