Pesquisador do RS que recusou homenagem de Bolsonaro recebe prêmio máximo da ciência brasileira

Cesar Victora, da Universidade Federal de Pelotas, é um dos cientistas mais influentes do mundo — Foto: Daniela Xu

O epidemiologista Cesar Victora será homenageado com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para a Ciência e Tecnologia, reconhecido pela academia brasileira como a mais importante honraria científica do país. O cientista, professor aposentado da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Sul do Rio Grande do Sul, é reconhecido internacionalmente por estudos sobre amamentação e nutrição infantil.

O prêmio é organizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) junto ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e à Marinha do Brasil. A entrega da honraria será feita, na quarta-feira (10), durante a reunião magna da Academia Brasileira de Ciências (ABC), da qual Victora é membro titular, no Rio de Janeiro.

“A Academia Brasileira de Ciências sempre foi um foco de promoção da ciência, da tecnologia e da educação, e nunca se calou em termos de combater as fake news, combater o negacionismo que foi tão presente no Brasil nos últimos anos. Foi um foco de resistência”, comenta Victora.

Em 2021, Victora recusou a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico, oferecida ao pesquisador pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). À época, o cientista mencionou em entrevista ao g1 que aceitar a homenagem seria “compactuar com o negacionismo, com a maneira como a pandemia tem sido enfrentada e com os cortes no orçamento científico do Brasil”.

“Quando eu recusei essa homenagem, essa condecoração do governo anterior, eu não fui o único. Foram mais de 20 cientistas que foram agraciados e que se uniram a mim nesse processo de recusa”, diz.

O Prêmio Almirante Álvaro Alberto é concedido desde 1981 a pesquisadores que tenham se destacado pelo conjunto de sua obra científica ou tecnológica e, em 2023, a homenagem contempla as Ciências da Vida. A escolha dos agraciados é feita por um comitê montado pelo Conselho Deliberativo do CNPq, que analisa diversos critérios, como o impacto das pesquisas, a inovação e a relevância dos resultados.

Trajetória acadêmica

Nascido em 1952 no município de São Gabriel, na Fronteira Oeste, Victora é formado em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Durante sua graduação, ainda nos anos 1970, atuou junto à Unidade Sanitária do Murialdo, na Zona Leste de Porto Alegre. Lá, foi criado o primeiro programa de residência comunitária do país e, entre a população da região, o problema da subnutrição infantil chamou a atenção do jovem pesquisador.

“Quantas crianças subnutridas a gente tinha que tratar… E eu não conseguia tratar. Elas tinham uma infecção, aí tinham diarreia, tinham pneumonia, tinham sarampo – naquela época, a vacinação contra o sarampo não era a regra. Então, naquela época, a gente ficava tratando as mesmas crianças muitas vezes”, relata o professor.

A partir de suas observações, Victora iniciou suas pesquisas sobre a nutrição materno-infantil, reconhecidas atualmente em âmbito mundial e adotadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em mais de 140 países. As principais conclusões, observando milhares de crianças pelotenses em seus primeiros “mil dias” – desde a concepção até o segundo aniversário –, apontam que a nutrição nos primeiros anos de vida impactam o capital humano de uma criança em sua vida adulta em diversas esferas, desde características físicas até a própria faixa salarial.

“Naquela época, o período de aleitamento materno no Brasil era muito curto, de cerca de dois meses e meio. Hoje em dia, é de mais de um ano. Melhorou muito. Acho que as pesquisas das quais participei naquela época foram importantes em mostrar a importância do aleitamento, especialmente do aleitamento nos primeiros seis meses de vida, o aleitamento exclusivo”, comenta Victora.

Inicialmente, com inclinação às ciências exatas, o médico relata que gostaria de ter cursado Física, uma de suas matérias favoritas durante os anos escolares. Porém, optou pela Medicina próximo ao Concurso Vestibular da UFRGS por desejar uma carreira com mais função social. Na área médica, conseguiu combinar elementos estatísticos ao interesse pela saúde, se encaminhando para a área da epidemiologia.

“É uma disciplina que usa muita estatística, muita metodologia, e acabei ganhando uma bolsa do CNPq, patrocinada pela população brasileira, para estudar epidemiologia na Universidade de Londres”, acrescenta o pesquisador.

Victora foi admitido como docente pela UFPel em 1977, logo após completar sua formação pela UFRGS, e concluiu seu doutorado em Epidemiologia da Assistência Médica pela Escola de Higiene e Medicina Tropical da Universidade de Londres. Ele atua junto à UFPel, onde se aposentou e hoje é professor emérito, há mais de 45 anos.

Polêmica com o governo federal

Em 1991, Victora foi co-fundador do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da UFPel, que atualmente tem a nota máxima na avaliação das pós-graduações brasileiras de acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Em 2020, durante a pandemia de covid-19 no Brasil, o programa foi protagonista de polêmica junto ao governo federal, que cortou o financiamento à pesquisa Epicovid-19, encabeçada pela UFPel e que monitorava o contágio pelo vírus em diversos municípios brasileiros.

“A ciência brasileira enfrentou um período bastante difícil nos últimos anos. Em dois sentidos: o primeiro, o negacionismo. Altas autoridades governamentais negando as informações científicas sobre a crise ambiental, sobre desmatamento e sobre a pandemia, principalmente. Ao mesmo tempo, houve um corte muito substancial nos recursos destinados à ciência e à tecnologia no Brasil. Esperamos que o futuro próximo seja mais promissor para os cientistas brasileiros”, avalia Victora.

Reconhecimento internacional

Atualmente, o epidemiologista integra o Conselho Científico da OMS e também no Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Nos órgãos internacionais, atua principalmente no aconselhamento quanto à implementação de políticas para a nutrição infantil, sobretudo em países em desenvolvimento.

Em 2021, o gaúcho recebeu o Prêmio Richard Doll, o mais importante da pesquisa em Epidemiologia, que é concedido a cada três anos pela Associação Internacional de Epidemiologia (IEA, sigla em inglês). A associação atribuiu a Victora, entre outras coisas, a contribuição para políticas globais sobre amamentação, nutrição infantil e desigualdades na saúde.

Mesmo com o reconhecimento internacional, Victora nunca pensou em fixar residência fora do Brasil. Entretanto, em sua avaliação, pesquisadores brasileiros que buscam oportunidades no exterior não devem ser criticados. O epidemiologista credita ao fenômeno que chama de “diáspora científica” fatores como a crise enfrentada por instituições federais, o baixo valor de bolsas e os salários oferecidos a pesquisadores.”Estudei toda a minha vida em escolas públicas e, por isso, eu tenho todo o compromisso com a população brasileira, que pagou meus estudos. (…) Trabalhei toda a minha vida em Pelotas, passei alguns períodos no exterior em intercâmbio, já fiz estudos em mais de 50 países, mas sempre com o pé em Pelotas, permanendo aqui, onde eu me aposentei. Agora, atuo como professor emérito na universidade, com alguns projetos de pesquisa que continuo levando adiante”, projeta o homenageado.

Com informações do g1.

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