Derrubada de drone dos EUA pela Rússia é mais um golpe na relação conturbada entre os países

Na terça-feira (14), um caça russo Su-27 forçou a derrubada de um drone americano MQ-9 sobre o Mar Negro.

Altos funcionários do governo dos Estados Unidos rapidamente colocaram a culpa na Rússia: o general James B. Hecker, comandante das Forças Aéreas dos EUA na Europa e África, disse que o voo “inseguro e pouco profissional” da aeronave russa quase causou a queda tanto do Su-27 e do Reaper.

O Comando Europeu dos EUA afirmou que um dos dois jatos russos que seguiam o Reaper voou intencionalmente na frente do drone e despejou combustível várias vezes.

O Departamento de Estado americano convocou o embaixador russo Anatoly Antonov sobre o incidente. Durante comentários no dia seguinte, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, alertou que as relações entre a Rússia e os Estados Unidos atingiram seu “ponto mais baixo”.

Mas o ponto mais baixo desde quando? Desde a anexação da Crimeia por Moscou em 2014? Desde a intromissão do Kremlin nas eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos? Ou talvez desde a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia no ano passado?

Com ambos os países chegando rotineiramente ao ponto mais crítico quando se trata de relações bilaterais, talvez precisemos de novos superlativos para descrever como as coisas estão ruins.

Não há como negar que o encontro no ar – a Rússia nega que tenha havido uma colisão – aumentou as tensões entre Moscou e Washington.

Mas um pouco de perspectiva histórica serve como um lembrete de que o confronto entre as duas nações com armas nucleares pode ser muito mais intenso.

Tomemos, por exemplo, um capítulo frequentemente esquecido da guerra na Síria. Em fevereiro de 2018, um contingente dos EUA no terreno no leste da Síria entrou em confronto com uma força avançando em sua base que incluía membros da empresa militar privada russa Wagner.

As tropas americanas convocaram ataques aéreos e de artilharia contra a força adversária, causando dezenas de baixas aos mercenários Wagner e seus aliados sírios.

A batalha foi o encontro mais mortífero entre as forças dos EUA e os combatentes russos desde o fim da Guerra Fria, mas não levou a uma escalada: o governo russo na época negou a existência do grupo mercenário (que atualmente carrega publicamente o peso da luta em torno da cidade ucraniana de Bakhmut).

Mas em 2018, reportagens sobre a batalha também destacaram a existência de uma “linha de desconflito” de longa data entre os militares dos EUA e da Rússia, destinada a minimizar o risco de escalada inadvertida, mantendo canais de comunicação abertos sobre movimentos e operações militares.

Esses canais permaneceram abertos mesmo após a invasão total da Ucrânia pela Rússia no ano passado. Em março passado, o Pentágono reconheceu que tinha uma linha de desconflito aberta para evitar erros de cálculo militares perto da Ucrânia.

Não está claro se os voos rotineiros de drones dos EUA sobre a região do Mar Negro atingem o nível de desconflito: o coordenador de comunicações do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby, disse que as aeronaves americanas “estão voando consistentemente sobre esse espaço aéreo há um ano”.

Ele argumentou que não havia razão para ativar linhas de descompressão antes de sobrevoar o Mar Negro. E, de acordo com o porta-voz do Kremlin, Peskov, o presidente russo, Vladimir Putin, foi informado sobre a queda do drone, mas não houve contatos de alto nível entre Moscou e Washington sobre o assunto.

Embora as linhas de comunicação possam estar abertas, o confronto EUA-Rússia certamente está em níveis nunca vistos desde os momentos mais perigosos da Guerra Fria.

“Não enfrentamos a perspectiva do Armagedom desde Kennedy e a crise dos mísseis cubanos”, avaliou o presidente Joe Biden a um grupo de democratas no ano passado, em resposta ao golpe de sabre nuclear de Putin.

“Não acho que exista a capacidade de usar facilmente uma arma nuclear tática e não acabar no Armagedom”, ponderou.

Mas, embora a Guerra Fria tenha proporcionado a crise dos mísseis cubanos e vários lançamentos nucleares, é menos lembrado hoje que a Guerra Fria se transformou em uma guerra quente entre as forças americanas e soviéticas em vários pontos durante o confronto de décadas.

Durante a Guerra da Coreia, por exemplo, os pilotos de caça dos EUA se envolveram em combate aéreo contra os MiGs soviéticos.

Essas lutas, no entanto, permaneceram envoltas em segredo, com registros rapidamente classificados (colocados em sigilo) e participantes jurados em segredo. Um dos motivos? O medo de tornar tais incidentes públicos pode aumentar as tensões entre as duas superpotências.

O mesmo também era verdade para voos de vigilância tripulados que os EUA realizavam em torno – e às vezes sobre – território soviético.

A queda do avião espião U-2 pilotado por Francis Gary Powers em 1960 é o caso mais famoso, criando grande constrangimento para os Estados Unidos e despertando a atenção da mídia mundial. Mas a maioria desses programas permaneceu confidencial e fora dos noticiários por décadas.

Um dos incidentes que só foi desclassificado (retirado do sigilo) décadas depois foi a queda do voo 60528, um avião modelo C-130 dos EUA em uma missão de espionagem que foi abatido sobre a Armênia soviética, matando sua tripulação de 17 pessoas.

O governo dos EUA reconheceu que entre 1945 e 1977 mais de 40 aeronaves de reconhecimento foram abatidas em tais missões.

Então, por que a repercussão e a fúria sobre a derrubada do Reaper?

Por um lado, há uma guerra de informações em andamento em torno da guerra na Ucrânia.

Os russos, por exemplo, tiraram proveito do incidente: o secretário do Conselho de Segurança da Rússia, Nikolai Patrushev, ressaltou que o país tentaria recuperar os destroços do MQ-9 para estudá-lo (dois funcionários dos EUA confirmaram à CNN que o software sensível na aeronave não tripulada foi apagado antes de cair no Mar Negro).

Andrew Weiss, especialista em Rússia e vice-presidente de Estudos e James Family Chair do Carnegie Endowment, sugeriu que a derrubada do drone tinha outro uso para os russos, permitindo que Moscou mantivesse um blefe confiável sobre sua disposição de escalar em um confronto com o Ocidente.

“A irritação russa com as atividades dos EUA e da Otan no/ao redor do Mar Negro não é novidade”, escreveu no Twitter.

“Certamente, as pessoas no Kremlin são espertas o suficiente para saber que os EUA não vão desistir de realizar missões de vigilância como o voo do drone que um jato russo derrubou”, adicionou.

Weiss acrescentou: “Por mais de um ano, o Kremlin rotineiramente ameaçou interferir nas remessas de armas ocidentais para a Ucrânia, mas não fez nada para respaldar isso”.

“Apesar de toda a conversa interminável sobre possíveis riscos de escalada de um ataque russo, a realidade é que a dissuasão foi mantida. … Mexer [com] um drone foi uma maneira de Moscou tentar reconstruir sua credibilidade perdida – sem ameaçar nenhuma vida dos EUA/Otan”

Mas essa é a espada de dois gumes da dissuasão.

Mexer com um drone é uma coisa, mas se Moscou agir de uma forma que ameace vidas (publicamente), então podemos acabar falando sobre um cenário diferente.

Com informações da CNN.

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