Crescimento da comunidade brasileira impulsiona luta contra o racismo em Portugal

Presença de até 500 mil brasileiros deu origem a coletivos de combate à discriminação, reforçando movimentos de portugueses e residentes de origem africana

A amplificação da luta contra o racismo em Portugal acompanha o aumento da população brasileira no país. A comunidade disparou a partir de 2017 e contribuiu para dar mais visibilidade internacional aos movimentos de combate à discriminação. Coletivos de apoio cresceram ou foram criados, virando protagonistas ao lado de organizações locais e de origem africana.

A população brasileira oficial em Portugal é de 204.694 pessoas, a maior entre estrangeiros. Se incluídos os que têm cidadania europeia ou aguardam regularização, o número se aproxima dos 500 mil. Eles ajudam a dar ressonância também internamente a episódios de racismo como o ocorrido na Costa da Caparica com os filhos de Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso.

Muitos dos novos residentes que desembarcaram com bagagem de ativismo social se identificaram com coletivos e associações nacionais estabelecidas, como o SOS Racismo e a Associação de Afrodescendentes Djass. Mas levaram bandeiras e pautas específicas do Brasil, como o assassinato da vereadora Marielle Franco. Assim, adicionaram voz própria ao movimento, seja de maneira individual ou em associações, como explica Pedro Góis, sociólogo e professor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

— A população brasileira cresceu e trouxe maior visibilidade ao tema. O eco antirracismo é sentido com mais intensidade hoje, porque estes brasileiros que trouxeram diversidade a Portugal projetam suas vozes para mais longe e com mais força. Sempre que há um caso com bastante repercussão, como esse agora, tenho esperança de que sirva para educar a população sobre o que não faz sentido — diz Góis.

Vários episódios de racismo ocorreram de 2017 até hoje contra brasileiros, africanos e portugueses. No mais grave, o ator português Bruno Candé foi assassinado em Lisboa. Manifestações aconteceram em várias cidades com participação de brasileiros, que incluíram nos protestos reivindicações e mensagens dirigidas ao governo em Brasília.

Aumento das denúncias

Entre 2017 e 2020, as denúncias de discriminação contra brasileiros aumentaram 433%, segundo os dados mais recentes da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR). O discurso de ódio contra brasileiros pode reunir múltiplas expressões e atacar a cor da pele, sexo e nacionalidade ao mesmo tempo. “As associações de imigrantes desempenham papel fundamental na integração, conscientização e divulgação dos mecanismos para a prevenção e combate à discriminação racial”, informou o CICDR.

Os coletivos de brasileiros são conhecidos pelo combate às várias expressões de discriminação e pela defesa da democracia no Brasil. Eles incluem o Coletivo Andorinha de Lisboa, fundado em março de 2016, e a Fibra, a Frente de Imigrantes Brasileiros Antifascistas do Porto, de 2018. Juntos, organizaram em 20 de novembro de 2021 o “Dia da Consciência Negra contra Bolsonaro” em frente à prefeitura de Lisboa.

A Casa do Brasil de Lisboa é a maior entidade de apoio aos imigrantes e mantém colaboração ativa com a CICDR. Fez 30 anos em 2022 e hoje tem duas mulheres na direção. A presidente é a psicóloga Cyntia de Paula. A vice é a cientista política Ana Paula Costa.

— A participação das mulheres brasileiras nos grupos de combate ao racismo tem sido fundamental, porque trazem a interseção de gênero e de nacionalidade. Com a nova onda de chegada de brasileiros, novos grupos, surgiram e se uniram ao movimento antirracista de Portugal, que há muito tempo faz um trabalho árduo — diz Costa, citando a Plataforma Geni e o Coletivo Maria Felipa, entre outros.

Cyntia de Paula acrescenta:

— Ninguém falava de Portugal racista e ainda há imensa resistência do Estado em assumir essa condição. Chegou um pessoal muito político, atento às questões em áreas nas quais que o Brasil está à frente, de combate ao racismo, machismo e patriarcado. Isso se refletiu na criação de coletivos. As Brasileiras Não Se Calam, por exemplo, é um movimento fundamental porque mostra que a discriminação mão é invenção de ativistas, é real — afirma De Paula.

Criado em 2020 pela psicóloga alagoana Mariana Braz, o Brasileiras Não Se Calam dá voz e apoio emocional às mulheres vítimas de discriminação por raça, etnia, gênero e nacionalidade. Sua página no Instagram atraiu milhares de seguidores e a atenção da imprensa e das universidades.

— Passamos a ter noção do quanto o pensamento colonialista está presente em Portugal. A mídia passou a falar e recebo pedidos de entrevistas para teses e artigos científicos. Além da violência sofrida por mulheres negras, existe a racialização daquelas que no Brasil eram lidas como brancas, mas na Europa são consideradas não brancas — conta Braz.

Baixa representação

Os ideais dos ativistas brasileiros começam a encontrar caminhos na política. Nas últimas eleições municipais, Cyntia de Paula foi incluída na lista do Bloco de Esquerda em Lisboa, e Rafael Henrique Victório, que colaborou na criação da Fibra, na do Porto.

— Enfrentamos resistência, mas temos permeado mais lugares na política, nos partidos, na esfera pública e na universidade — diz De Paula.

Ana Paula Costa lembra que a representação na Assembleia da República, o Parlamento português, evidencia que o racismo estrutural ainda é grande:

— Em 2019, três deputadas negras foram eleitas, mas todas foram muito atacadas e sofreram racismo. Mesmo ocupando espaços de poder e de representatividade, mesmo eleitas, houve uma estrutura que resistiu à presença de mulheres negras nesses espaços. Hoje, só temos uma deputada negra [Romualda Fernandes, do Partido Socialista].

Pedro Góis alerta para o que chamou de risco de que a politização do movimento prejudique a luta contra o racismo.

— A pauta antirracista vem sendo apropriada por grupos políticos e não podemos correr o risco de deixarmos politizar. São questões sociais e devem ser encaradas assim. Não vejo outra maneira que não seja o combate feito pela própria sociedade — afirma Góis.

As informações são do Jornal O GLOBO.

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