A tesoura de Milei: cortes na Argentina atingirão de aposentados à classe média

Política de choque anunciada pelo novo presidente na posse impactará amplos setores da sociedade argentina, incluindo servidores públicos, empresas, governos provinciais e universidades

A tesoura de Milei: cortes na Argentina atingirão de aposentados à classe média

Apoiador de Javier Milei se veste como o presidente eleito durante a cerimônia de posse na Argentina — Foto: Gustavo ORTIZ / AFP

O programa de governo apresentado durante a campanha eleitoral pelo novo presidente argentino, o ultradireitista Javier Milei, dizia que “não tomaremos nenhuma decisão que transfira o custo do ajuste às vítimas do sistema”. Como costuma acontecer na política, as promessas de campanha se perdem no caminho e, uma vez que o candidato chega ao poder, a realidade se impõe.

A política de choque que Milei anunciou em seu discurso de posse — e que o novo ministro da Economia, Luis Caputo, deve começar a anunciar hoje — impactará amplos setores da sociedade argentina, entre eles a classe média e os mais humildes, servidores públicos, fornecedores do Estado, empresas de obras públicas, governos provinciais e universidades estatais, entre muitos outros.

Vários países da América Latina passaram por situações similares nas últimas décadas, e um dos exemplos que têm sido citados pela imprensa é o do chamado “fujichoque”, o plano implementado pelo então presidente peruano Alberto Fujimori (1990-2000), poucos dias depois de assumir o poder — e cerca de dois anos antes de dissolver o Parlamento.

A grande diferença entre Milei e Fujimori é que o peruano passou a campanha inteira criticando os que defendiam um ajuste fiscal. Já o novo presidente argentino avisou, com luxo de detalhes, o que faria se fosse eleito. A dúvida, agora, é se a sociedade argentina vai tolerar o tamanho do ajuste.

— Milei explicou que deverá corrigir os preços relativos da economia, o tipo de câmbio e as tarifas de serviços públicos. Isso afetará a todos porque implicará uma aceleração temporária da inflação — explica o consultor Ignacio Labaqui, professor da Universidade Católica Argentina (UCA).

De acordo com Carlos Fara, diretor da Fara e Associados, os mais afetados pelo ajuste do novo governo serão “fornecedores do Estado, empresas de obras públicas e seus trabalhadores, governos provinciais e municipais, e toda a rede que está por trás deles. Tudo isso pode ser cortado sem passar pelo Parlamento”.

O “no hay plata” (não tem dinheiro, em tradução livre) do novo presidente argentino vai afetar, também, a cultura em geral, incluindo o financiamento de filmes, e programas destinados às mulheres e movimentos LGBT, entre outros.

Embora o pacote fiscal tenha ficado para hoje, ontem, o novo governo já iniciou mudanças em relação ao câmbio: quem quiser comprar o dólar na taxa oficial precisará, a partir de agora, de uma autorização prévia do Banco Central. Na prática, é uma espécie de “feriado cambial”, segundo jornais argentinos. Importadores são diretamente afetados, pois usam o dólar oficial para as transações internacionais. Cidadãos comuns que usam o cartão de crédito para uma compra internacional, por exemplo, também são afetados.

Classe média e setores mais humildes

Uma parte do ajuste que será aplicado pelo novo governo está relacionada à liberação de preços e eliminação de tarifas de serviços públicos. Isso implicará, em janeiro e abril, fortes aumentos nas contas de gás, eletricidade e transporte público, entre outras. Programas como o chamado “preços cuidados”, usados para controlar as remarcações de preços, sobretudo em alimentos e bebidas, serão eliminados.

Os argentinos, que sofrem aumentos semanais em suas compras nos supermercados, sentirão uma escalada de preços muito mais expressiva. A liberação também incluirá os combustíveis, que nas últimas semanas sofreram reajuste, em média, de 40%.

O tarifaço será sem anestesia, como disse Milei no discurso de posse: “Para fazer algo gradual é preciso ter financiamento, mas lamentavelmente devo dizer, de novo, que não temos dinheiro”. O país deve fechar o ano com inflação de até 180%, e a taxa deve subir com força nos primeiros meses de 2024.

Obras públicas

Nas últimas semanas, recursos para obras públicas no interior começaram a ser cortados já pelo governo Fernández. O novo governo deixou claro que serão continuadas apenas as obras que contarem com financiamento externo. A paralisação afetará milhares de operários.

Recursos para províncias

Segundo antecipou a mídia local, Milei vai reduzir drasticamente as remessas de recursos a governos provinciais, que usam o dinheiro enviado pelo Estado para financiar despesas em saúde, educação e segurança, entre outros. Muitos governadores já expressaram preocupação em relação aos próximos meses, e alertaram sobre o risco de uma crise fiscal de consequências graves.

Universidade públicas

A Argentina tem 55 universidades estatais, que dependem de recursos do Estado e das províncias para manter sua estrutura e pagar salários. A Universidade Nacional de Buenos Aires (UBA) é a mais importante, com mais de 300 mil alunos e cada vez mais estudantes estrangeiros. O orçamento das universidades, como muitos outros, deverá ser congelado. O governo vai rever os convênios com todas as universidades do país.

Aposentados

Segundo dados oficiais, a Argentina tem quase 7,5 milhões de aposentados, entre 44 milhões de habitantes. O novo governo prometeu não congelar aposentadorias, mas estuda uma fórmula de reajuste diferente, que vai significar, segundo economistas, a perda de poder aquisitivo dos aposentados pela inflação em alta.

Servidores públicos e estrutura do Estado

Na primeira reunião de Gabinete, ontem, foi decidido realizar um inventário geral dos recursos físicos, estruturais e dos servidores do Estado. O governo vai revisar as contratações dos ministérios e exigir trabalho presencial a todos os servidores. Segundo informou o porta-voz, Manuel Adorni, todos os “contratados militantes” de governos anteriores serão afastados. A Argentina tem, segundo dados oficiais, 3,5 milhões de servidores no Estado nacional e províncias.

Mulheres e política de gênero

O governo do então presidente Alberto Fernández criou, em 2019, o Ministério das Mulheres, Gênero e Diversidade, eliminado por Milei. Cerca de 90% do orçamento da pasta estavam destinados ao Programa de Formulação de Políticas contra a Violência por Motivos de Gênero, que foi extinto.

Cultura

O governo de Milei ainda não informou como tratará o financiamento à cultura em geral, mas na campanha o então candidato presidencial disse que eliminaria, entre outros organismos, o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (Incaa).

Este ano, o governo Fernández elevou o teto de subsídios a filmes nacionais, de 56% para 63% do custo médio de produção para longas-metragens, e de 28% para 31,50% para documentários. A expectativa entre representantes da cultura é de um orçamento baixíssimo, ou nulo, para cinema, teatro, e todo tipo de produções culturais.

Com informações do Jornal O GLOBO.

Sair da versão mobile