Stranger Things: Conheça a história real que inspirou o personagem Eddie

Diretores da série queriam explorar o fenômeno do "pânico satânico" na sociedade dos Estados Unidos nos anos 1980, e se basearam no caso do "trio de West Memphis"

No último dia 1º, foram lançados os aguardados dois últimos episódios da quarta temporada de “Stranger Things”. A primeira parte, lançada no fim de maio, foi responsável pelos maiores números de audiência já registrados pela plataforma.

Entre os elementos de destaque desta temporada da maior franquia da Netflix está a chegada do personagem Eddie Munson, interpretado pelo ator Joe Quinn.

O jovem personagem cabeludo, repetente do ensino médio e fã de heavy metal foi meticulosamente escrito pelos Irmãos Duffer, diretores de “Stranger Things”.

“Somos muito preciosos em adicionar pessoas [no elenco] porque já temos um conjunto incrível de atores. Então, só queremos adicionar alguém se acharmos que eles são necessários para contar a história que estamos contando”, contou Ross Duffer, em uma entrevista ao blog “Tudum”, da Netflix.

A trama de toda a temporada é puxada a partir da morte da líder de torcida Chrissy Cunningham.

Eddie é acusado pela população e autoridades da cidade fictícia de Hawkins de ser o responsável pelo assassinato e de liderar um “culto satanista”, neste caso, o clube “Hellfire” – formado pelos alunos menos populares, que jogavam juntos o RPG de mesa “Dungeons & Dragons”.

“Uma questão que nós realmente queríamos entrar é o ‘pânico satânico’. Então, isso nos levou de volta aos documentários ‘Paradise Lost’ e o caso do trio de West Memphis, com Damien Echols”, contou Ross Duffer.

“Paradise Lost” é uma trilogia feita pelo documentarista indicado ao Oscar, Bruce Sinofsky, que lançou dúvidas sobre a condenação de três adolescentes no estado americano de Arkansas, em 1994, no caso que ficou conhecido como o “trio de West Memphis”.

Entre os condenados, estava Damien Echols, um roqueiro, fumante, de cabelo comprido, fã de Metallica, que recebeu a principal pena e chegou a ficar 18 anos no corredor da morte.

Os jovens foram acusados de assassinar três crianças de oito anos de idade em um episódio que exemplifica o fenômeno social da época chamado de “pânico satânico”

“Nós realmente queríamos aquele personagem metaleiro, fã de D&D, um verdadeiro nerd de coração. Mas, do ponto de vista externo, as pessoas podem dizer que ‘este é alguém assustador’. Foi aí que surgiu Eddie”, relatou o diretor.

Eddie Munson com seus colegas do clube “Hellfire”, Dustin (esq.) e Mike (dir.) / Netflix

O que é “pânico satânico”?

O chamado “pânico satânico” foi um fenômeno social descrito pela primeira vez nos anos 1980 nos Estados Unidos.

De certa forma, o pânico satânico é uma derivação e está abaixo de um “guarda-chuva” maior, que é o conceito de “pânico moral”, popularizado pelo cientista social Stanley Cohen, no livro “Folk Devils and Moral Panics”, em 1987.

O professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Francis Moraes de Almeida, explicou à CNN que o pânico moral é uma situação que se cria quando surge um tópico sensível na sociedade.

Ele explica que, então, se cria um consenso na sociedade de que esse tópico sensível é importante para sociedade e pode ser visto como uma ameaça.

“Em algum momento, se apresenta, ou se identifica, um bode expiatório, que vai ser a causa desse malefício. Então surge uma lógica de caça às bruxas em torno desse bode expiatório”, contou o sociólogo, que é um dos poucos pesquisadores do tema no Brasil.

O “pânico satânico” deriva desse fenômeno do “pânico moral”.

“Houve uma preocupação de que os jovens estariam perdendo seus valores cristãos e sendo convertidos a seitas ocultas. Esse fenômeno não é exclusivo dos Estados Unidos, mas foi mais intenso lá, principalmente em meados dos anos 1970, até o final dos anos 1980”, relata o professor Francis.

“Eles estariam perdendo seus valores, se afastando de seu grupo de referência primário, que são as famílias, para se reunir a um outro grupo”, pontua. Esse “outro grupo” seriam pessoas que acreditam “no demônio”, fazem cultos, rituais, oferendas e sacrifícios.

“Importante destacar sempre que não há nenhuma evidência de que isso aconteceu em qualquer momento da história”, acrescentou.

O especialista comenta que também era muito comum a ideia de “gurus ou figuras carismáticas, que poderiam dominar os jovens mais desavisados”. Em “Stranger Things”, este seria o caso de Eddie Munson com as crianças do clube “Hellfire”.

“E há uma contradição porque vem muito da imagem do nerd dos anos 1980. Ele não bebe, não participa das demais coisas, são os não esportistas, geralmente com baixa habilidade social e inteligentes”, disse.

No entanto, ao mesmo tempo, esse jovens “mais inteligentes” seriam “cognitivamente vulneráveis” e facilmente manipuláveis diante da figura do líder carismático. Ao menos é o que acreditava toda a cidade fictícia de Hawkins.

Crianças de “Stranger Things” se reuniam no clube “Hellfire” para jogar o RPG de mesa Dungeons & Dragons / Netflix

O caso do trio de West Memphis

A base para a escrita dos irmãos Duffer aconteceu relativamente alguns anos depois do auge do fenômeno do pânico satânico, nos Estados Unidos. Foi na pequena cidade, com menos de 30 mil habitantes, de West Memphis, no estado americano de Arkansas, entre 1993 e 1994.

O adolescentes Damien Echols, de 18 anos à época, e, neste caso, o “Eddie Munson da vida real”, e seus amigos Jason Baldwin, 16, e Jessie Misskelley Jr., 17, foram acusados de assassinar três crianças de oito anos de idade, Chris Byers, Stevie Branch e Michael Moore.

Um dia após terem seu desaparecimento relatado, no dia 6 de maio de 1993, os corpos das crianças foram encontrados em uma vala com marcas de espancamento e os próprios cadarços amarrando os corpos.

“Apesar da violência do crime, havia poucas evidências na cena do crime”, aponta a enciclopédia do Sistema Central de Bibliotecas de Arkansas (CALS). “O estado dos corpos dos meninos rapidamente inspirou rumores de que um culto satânico era o responsável pelo crime”, acrescenta.

Poucos dias depois do assassinato, o inspetor-chefe Gary Gitchell afirmou que considerava entre as hipóteses a atividade de um culto, que logo ofuscou as outras linhas de investigação.

Foi então que Jerry Driver entrou na história. Ele era um oficial de condicional, que tinha o adolescente Damien Echols sob sua supervisão depois dele ter sido preso por roubo e má conduta sexual.

Driver estava convicto da existência de um culto na região e de que Echols estava envolvido. Então, fez a denúncia à polícia. “Echols negou qualquer conexão com o satanismo, mas admitiu acreditar e praticar magia”, relata a enciclopédia.

Um dos jovens acusados, Jessie Misskelley, de apenas 17 anos, foi interrogado por horas pela polícia, mas apenas trinta minutos foram registrados. No final do interrogatório, ele confessou e implicou Echols e Baldwin.

“A confissão de Misskelley, no entanto, era inconsistente com os detalhes do crime que a polícia já conhecia. Enquanto confessava, Misskelley às vezes também contradizia sua própria história. […] Quase imediatamente após a confissão, Misskelley se retratou. Ele afirmou que ficou confuso com o comportamento da polícia e tentou cooperar sem perceber as implicações de suas declarações”, relata a enciclopédia.

Após um julgamento com grande atração midiática e poucas provas substanciais, os júris determinaram, em 1994, que os três eram culpados. Misskelley e Baldwin foram condenados à prisão perpétua.

Echols foi considerado o líder do grupo e condenado à morte por injeção letal.

Após os primeiros julgamentos, os advogados de defesa entraram com uma série de recursos alegando má conduta no julgamento e apresentando novas evidências de inocência.

Quarto decorado com pôsteres de Jessie, um dos acusados no caso do trio de West Memphis / Getty Images

Em 1996, os documentaristas Bruce Sinofsky e Joe Berlinger lançam o documentário “Paradise Lost”. Foi o primeiro de uma trilogia, com sequências lançadas em 2000 e 2011.

Os filmes ajudaram a chamar atenção para o caso, levantar questões sobre as evidências apresentadas e conquistou o apoio de famosos, que pressionaram por uma revisão do caso, como Eddie Vedder, Johnny Depp, Tom Waits e Henry Rollins.

Em 2011, eles foram soltos da prisão após assinar um acordo, no qual mantiveram sua inocência, mas confessavam que os promotores tinham provas para condená-los, dando um fim “estranho e semipermanente” para o caso, conforme relata a enciclopédia do estado.

Foram 18 anos na prisão e no corredor da morte, mas eles não receberam nenhuma compensação. Em entrevista à CNN, Echols afirmou que sua fé e sua esposa o mantiveram vivo.

Em janeiro de 2022, os advogados de Echols deram entrada em um pedido por novos testes de DNA, afirmando que os testes utilizam tecnologia que não estava disponível na época, e poderiam servir para identificar os assassinos e trazer justiça para o caso.

Na sexta-feira (24), um juiz rejeitou o acesso às provas para que os testes fossem feitos.

“Estamos extremamente desapontados com a decisão do juiz, que se baseou em uma interpretação restrita da lei e que não permitiu que a justiça fosse feita”, disse à CNN Lonnie Soury, membro da equipe de defesa de Echols.

“Tudo o que pedimos é o direito de procurar identificar o DNA do(s) verdadeiro(s) assassino(s)”, acrescentou. Soury disse que vão recorrer da decisão.

 

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