‘Sonhava que estava dentro de um disco voador’, diz cineasta que sobreviveu à intubação

Na saída da clínica particular onde ficou 20 dias internado com Covid-19, Cavi Borges quase não teve firmeza na mão para assinar o próprio nome no documento de alta, recebida no último dia 26. A dificuldade de andar e sustentar o corpo 15 quilos mais magro ainda permanece. Assim como a atrofia nos músculos dos braços, a rouquidão, a tosse, o esforço em puxar o ar para falar, além de uma certa confusão para se localizar no tempo (“os 20 dias pareceram dois meses”, conta).

Mas o cineasta de 45 anos, diretor de mais de 50 curtas e longa-metragens, fundador da tradicional locadora Cavideo, hoje em Laranjeiras, e um dos mais ativos produtores do cinema independente brasileiro, só tem a comemorar. Afinal, sobreviveu ao violento processo que entre novembro de 2020 e março deste ano matou oito de dez pacientes intubados em UTIs do Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde.

— Foi uma experiência surreal e traumática. E fiquei muito impactado no hospital. É muita gente jovem de 30, 40 anos, chegando. Um cara de 42 anos que entrou no mesmo dia que eu, morreu. Ele pediu à enfermeira: “Não me intuba, não vou voltar”. Estava sentindo — lamenta. — A galera acha que só velhos morrem. Aqui na General (Glicério, rua em Laranjeiras, onde mora), está todo mundo no bar, bebendo sem máscara.

Cavi mesmo minimizou os sintomas. Só foi parar no hospital por insistência da irmã, que não sossegou diante da resposta dele de aquele mal-estar “não ia dar em nada”. O cineasta se fiava no fato de não ter se contaminado mesmo após a mulher, a atriz e bailarina Patrícia Niedermeier, contrair a doença por duas vezes.

Bastaram três dias para que já chegasse à clínica com o pulmão comprometido por uma pneumonia agressiva. Lutou pela melhora com toda força para evitar a intubação (“todo mundo tem medo dessa palavra”). Isolado, se agarrou às mensagens dos amigos que pipocavam no celular.

— O único lado bom é ver que tanta gente gosta da gente — diz. — Agradeço também por ser privilegiado, ter plano de saúde, um quarto só para mim, quatro enfermeiras. As estatísticas de morte são altas por causa da precariedade dos hospitais públicos. Intubamento exige muito remédio. Eu era medicado a cada três minutos.

Outra peça-chave no processo foi a pneumologista Paula Werneck, contratada pela irmã de Cavi, que agiu rapidamente quando ele passou a correr risco de morrer.

— Ela teve sensibilidade para decidir a hora certa de me intubar — lembra.

Cavi Borges com a mulher, Patricia Niedermeier, e o cachorro Franz: cão ficou com pneumonia enquanto o dono estava internado Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

‘Não era a minha hora’
Nesse momento, Cavi teve uma certeza interna de que sobreviveria (“pensava: ‘vamos resolver isso logo’”), mas tinha medo de sofrer. Minutos antes, mandou mensagem à mulher: “Torce por mim, daqui a cinco cinco dias, a gente se fala”. Foram quatro. Enquanto Patrícia consultava uma mãe de santo (“ela disse que que ainda não era a minha hora”, conta Cavi), o diretor alucinava com a medicação pesada.

— Sonhava que estava dentro de um disco voador e também que tinha uma cúpula de vidro em volta de mim. Vou fazer um filme com essas viagens. Quando voltei, não sabia onde estava nem quanto anos eu tinha.

O processo de desintubação foi curioso. Quando os médicos começaram a diminuir a sedação, Cavi arrancou o tubo do corpo.

— Foi um reflexo. A médica não sabe como aconteceu, inclusive porque eu estava amarrado para evitar justamente esse reflexo. Aquele tubo é muito incômodo — afirma.

Os aparelhos começaram a apitar e, quando Paula chegou, constatou que não precisava intubar de novo. Cavi estava pronto para sair. Ainda foram dez dias até voltar para casa, onde foi recebido pelo cão Franz, que chegou a ficar com pneumonia enquanto o dono estava internado. Já está recuperado, mas Cavi ainda percorrerá um longo caminho de fisioterapia pulmonar e corporal (“pareço um velhinho”) até conseguir realizar seu maior desejo atual: correr na praia e dar um mergulho no mar.

Mas o diretor de filmes como “Cidade de Deus: 10 anos depois” (com Luciano Vidigal), “Vida de balconista (com Pedro Monteiro) e “Salto no vazio” (com a mulher, Patrícia), já retomou o trabalho. Vai lançar três novos filmes: “Me cuidem-se” (com Bebeto Abrantes); “O cinema é minha vida”(com Patricia e Rodrigo Fonseca); e “Fado tropical”. Todos estão na programação do primeiro “Festival Estação Virtual — 35 anos de cinema brasileiro”, do qual Cavi é curador.

O evento marca a estreia do Grupo Estação em streaming com a exibição gratuita de produções nacionais até dia 31, na plataforma Vimeo (/estaçãovirtual). Lives e pré-estreias on line encorpam o festival, ancorado na Lei Aldir Blanc. Para Cavi, que se dedica ainda à abertura de um “clube do cinéfilo”, com locadora e biblioteca, dentro do Estação Net Rio, o futuro do cinema é justamente este: transformar as exibições em eventos.

— A pandemia acelerou o boom do streaming. Não dá mais para só colocar o filme em cartaz e esperar o público chegar. É preciso pensar em exibições com debates, festas e outras opções para fazer as pessoas saírem de casa.

Como se vê, o agitador está de volta. Agora só falta a pandemia acabar.

As informações são de O Globo.

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