Os demônios de Casagrande: filme na Globoplay mostra luta contra vício

Com depoimentos de Galvão Bueno, Serginho Groismann e Baby do Brasil, vida do craque é contada, dos gols em campo à batalha contra a dependência química

“Os médicos me falaram mesmo: você não morreu porque é ex-atleta, seu coração estava meio acostumado a um batimento cardíaco alto. Se fosse outra pessoa, com a quantidade de drogas que você usou e tudo ao mesmo tempo, o coração teria explodido rapidamente.”

O primeiro depoimento do ex-jogador Walter Casagrande Júnior no documentário Casão – Num Jogo sem Regras, na Globoplay desde quinta-feira 26, é um chute na cara do espectador. Com absoluta franqueza, o craque do Corinthians conta como começou a usar drogas, da cervejinha e do baseado ocasionais para a heroína injetada no braço, e a gigantesca dificuldade para se livrar do vício.

Na fase mais aguda da dependência química Casagrande pesava 71 quilos mal distribuídos em um corpo de 1m91 e via demônios por todos os lados, o tempo todo. Nas sessões com seu psiquiatra, não podia sair de um pequeno retângulo porque se imaginava atacado do lado de fora pelas imaginárias criaturas do mal.

Em certo momento ele diz que se afasta de uma janela pensando que os demônios o jogariam lá de cima e as pessoas pensariam que ele havia se matado. Casagrande teve overdose, infartou, capotou o carro sob efeito das drogas. O longo percurso de reabilitação só encontrou um caminho eficaz depois de ter permanecido internado por um ano, em decisão da família.

O ápice da exposição das feridas do craque foi quando, na final da Copa da Rússia, no estúdio da TV Globo montado em Moscou, ele fez o desabafo ao companheiro de narração Galvão Bueno. “Essa é a Copa mais importante da minha vida. Eu tive uma proposta quando vim para cá, quando saí do Brasil, que era chegar pela primeira vez em uma Copa do Mundo sóbrio, permanecer sóbrio e voltar para minha casa sóbrio. Então estou muito feliz”, disse, em lágrimas.

Entre a seleção e a Europa

O documentário conta com depoimentos de Galvão, Serginho Groismann, a ex-namorada Baby do Brasil. Casagrande conta em certo momento que sua missão passou a ser falar sempre que possível de sua história pessoal contra a dependência química, sem frases feitas e sem lições de moral, com sinceridade impressionante, para ajudar outras pessoas na mesma situação. “Fiz muitos gols, muita coisa legal e muita merda”, diz.

Mas a batalha contra o vício não é o único tema dos 154 minutos divididos em quatro episódios do documentário. A vida de Casagrande foi tão torta quanto seu jeito desengonçado de correr atrás da bola. Suas atitudes eram sempre reflexo de uma personalidade forte, uma forma própria de pensar. Ao ser preterido de uma convocação no time titular do Corinthians, quando ainda era juvenil, resolveu sair do seu time do coração.

Foi uma atitude corajosa e pouco convencional. Casagrande passou uma temporada no pequeno Caldense, em Poços de Caldas, onde virou ídolo. Só voltou ao Corinthians seduzido pela revolucionária gestão, envelopada por uma genial peça de marketing, chamada Democracia Corintiana.

Na Democracia Corintiana todas as decisões eram votadas, até mesmo a obrigatoriedade de concentração antes dos jogos. Do técnico ao roupeiro, todos tinham o mesmo peso. Isso aconteceu entre 1982 e 1984, ainda na ditadura militar. Era pouco comum então, e é até hoje, ver jogadores de futebol se posicionando politicamente. Foi o que Casão fez, ao lado de Vladimir e do ídolo e amigo Sócrates, presenças constantes nos atos pelas Diretas Já.

Casagrande passou por uma boa campanha no São Paulo e uma fracassada participação na seleção brasileira na Copa de 1986 antes de jogar na Europa. Atuou pelo Porto, que se sagrou campeão da Copa da Uefa. Na hora de renovar contrato, em vez de permanecer no time campeão, preferiu ir para o pequeno Áscoli, na Itália, sem nunca ter ouvido falar antes do time.

A saída do time português teve um motivo: foi no Porto onde Casagrande experimentou heroína. E se assustou em um primeiro momento. O Áscoli nunca teve outra pretensão a não ser evitar o rebaixamento. Com Casagrande, viveu dias de glória.

Casagrande passou por algumas lesões graves na carreira. Ao final de seu contrato de três anos, não conseguiu impedir o Áscoli de cair para a segunda divisão. O mais comum seria ele aceitar proposta de algum outro grande time europeu. Ele era um jogador conhecido, com passagens por Uma Copa do Mundo. Não para o Casão. Sentindo-se em dívida com o time que o acolheu, resolveu ficar na equipe rebaixada.

Volta Casão, seu lugar é no Timão

Sua aposentadoria dos gramados foi, evidentemente, no Corinthians. Casagrande decidiu voltar ao time do coração após uma partida contra o Flamengo, quando atuava pela equipe rubro-negra. Toda vez que Casagrande, atacante do Flamengo, pegava na bola, a Fiel gritava: “Volta Casão, seu lugar é no Timão.”

Casagrande ficou transtornado nesse jogo, sem entender o que estava acontecendo. Como ato final do drama, acabou fazendo um gol contra o Flamengo. No vestiário, ao encontrar o amigo e corintiano jornalista Juca Kfouri, chorou de emoção.

A parceria, a admiração e o amor pelo seu melhor amigo ocupam boa parte do documentário. Casagrande e Sócrates se encontravam na parceria em campo, e também na irreverência, nos valores sólidos, na alegria pela vida. Mas correram para campos opostos no maior desafio que tiveram.

Sócrates acabou morrendo de problemas relacionados ao alcoolismo, sem largar a bebida. Casagrande conseguiu reabilitar-se. O que é diferente de recuperar-se. Ele sabe, e prega isso, que será sempre um dependente químico. Para ele, os demônios sempre estarão por perto.

As informações são da EXAME.

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