Nara Leão ressurge dócil e indomada em série documental sobre a vida livre da cantora

♪ “Ela não se deixava conduzir por nada nem ninguém”, resume Chico Buarque, em certo momento de Opinião, segundo episódio da série documental O canto livre de Nara Leão, produto Original Globoplay disponível na plataforma desde ontem, 7 de janeiro de 2022.

A observação de Chico Buarque é corroborada pelas narrativas dos cinco episódios dirigidos pelo cineasta e roteirista Renato Terra na melhor produção do selo Conserva.Doc, núcleo de documentários do programa Conversa com Bial (TV Globo).

A imagem que fica de Nara Lofego Leão (19 de janeiro de 1942 – 7 de junho de 1989), ao fim dos cinco episódios, é a de uma mulher de temperamento forte e indomado. A própria Nara se mostra assim, como leoa dócil e ao mesmo tempo brava para fazer valer as vontades e a ideologia que defendeu na música e na vida.

Basta conferir a cena em que a cantora conta que preferia deixar de se apresentar em programa de TV se tivesse que se maquiar ou mexer no cabelo. Está lá no primeiro episódio, Bossa Nova, dedicado à gênese da mulher e da cantora que, na definição poética de Carlos Lyra, personificou não a musa, mas “a música da Bossa Nova”.

Repleto de raridades, como fotos da adolescência de Nara e como o áudio da primeira apresentação em público da cantora, em 13 de novembro de 1959, na Escola Naval, no Rio de Janeiro (RJ), cidade que abrigou a artista de origem acidentalmente capixaba, o episódio inicial Bossa Nova dá o tom calmo da série documental batizada com o nome de álbum lançado por Nara em 1965.

Feita sem a pressa dos tempos atuais, a edição do documentário O canto livre de Nara Leão é suave como a própria bossa carioca, dando tempo para os entrevistados contarem histórias e exporem ideias sobre Nara.

O time de entrevistados inclui nomes do porte de Chico Buarque, Edu Lobo, Fagner Maria Bethânia, Marieta Severo, Nelson Motta e Paulinho da Viola. Todos contribuem para elucidar um pouco a personalidade da Nara. Mas muito do charme da série vem das próprias falas dessa cantora que dizia o que pensava. Cabe mencionar o take em que Nara se refere à “tirania de João Gilberto” em depoimento para o Museu da Imagem e do Som (MIS) no episódio Opinião.

Esse segundo episódio foca o engajamento da artista após o rompimento com a Bossa Nova – dissidência provocada mais pela desilusão amorosa da cantora com o então namorado Ronaldo Bôscoli (1927 – 1994) do que por ideologia musical, como fica claro ao fim do primeiro episódio – e a participação em shows teatralizados como Opinião (1964) e o espetáculo Liberdade, Liberdade (1966).

A batalha de Nara com o Exército, por conta de declarações inamistosas sobre os militares, também entra na pauta de Opinião, episódio que alcança pico de beleza quando exibe os olhos marejados de Nara em fala elogiosa sobre a poesia de João do Vale (1934 – 1966) diante do próprio compositor, colega da cantora no elenco do show Opinião.

Mais da metade do terceiro episódio, A banda, é dedicado à conexão de Nara com Chico Buarque, compositor da marcha alegre que a cantora defendeu com o autor em consagrador festival de 1966.

Chico relata a formalidade do primeiro encontro com a cantora, para quem mostrou músicas como o rejeitado samba Malandro quando morre – rejeição endossada por Chico no documentário.

Além de Chico, o episódio revive encontros musicais de Nara com Fagner e com Dominguinhos (1941 – 2013) enquanto Nelson Motta ressalta o faro da cantora para avalizar jovens compositores, citando o exemplo de Sidney Miller (1945 – 1980).

O quarto episódio, Quero que vá tudo para o inferno, parte da polêmica adesão de Nara à música de Roberto Carlos e Erasmo Carlos ainda no reino da Jovem Guarda. “O Edu (Lobo) quase me matou”, recorda Nara em entrevista de 1978, ano em que lançou álbum com músicas da dupla, relembrando o embate travado com a ala nacionalista da MPB. “O pessoal da MPB se sentiu corneado”, endossa Nelson Motta, aos risos, ao falar da adesão de Nara ao cancioneiro de Roberto e Erasmo.

E por falar em MPB, gênero surgido em 1965, na visão de muitos estudiosos da música brasileira, a MPB teria começado a germinar no primeiro LP da cantora, Nara, editado em 1964 com repertório que incluída sambas de Baden Powell (1937 – 2000), Cartola (1908 – 1980), Nelson Cavaquinho (1911 – 1986) e Zé Kétti (1921 – 1999) – ainda que Paulinho da Viola ressalte no segundo episódio, com sagacidade, que o álbum Nara mantinha os vínculos da cantora com a bossa nova na parte instrumental.

A Nara de canto livre que dera voz aos sambistas e a Roberto & Erasmo é a mesma Nara que dera aval à Tropicália em reforço relevante, como ressaltara Maria Bethânia em outro momento da série, que peca somente por não creditar as datas dos números musicais e entrevistas que rebobina sem didatismo.

Ao fim, o quarto episódio revela o namoro de Nara com Kleiton Ramil – mantido às escondidas no início dos anos 1980 para preservar os filhos de Nara. É a ponte perfeita para o episódio final, Fiz a cama na varanda, o mais sensorial dos cinco.

É quando os filhos de Nara – sobretudo Isabel Diegues, consultora da série – falam da Nara maternal que recusava shows e entrevistas para ficar em casa com a prole.

É quando Cacá Diegues lembra que foi Nara quem o pediu em casamento (mantido de 1967 a 1977) e que, mais tarde, foi a mulher quem decidiu ter filhos, enfatizando que ela estava no controle.

Isabel Diegues veio ao mundo na França, em 1970, um ano antes de Nara gravar, em Paris, o álbum duplo Dez anos depois (1971), incluindo enfim na discografia os standards da bossa nova, gênero do qual fora musa à própria revelia.

É nesse episódio final que Roberto Menescal – nome justificadamente recorrente ao longo da série pela relevância que teve em toda a vida de Nara, que apresentou o jazz ao namoradinho de adolescência – recorda os anos finais da artista, que voltou à cena com discos e shows (feitos com Menescal) enquanto tentava minimizar os efeitos do tumor no cérebro que a tiraria definitivamente de cena aos breves 47 anos.

Mas Nara Leão vive, fazendo ecoar o clichê da imortalidade de grandes artistas. E, como o canto plural, ainda parece voar livre, como sugere a tocante cena que arremata o documentário com Isabel Diegues e o filho José Bial, neto de Nara, a leoa tão dócil quanto indomada.

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