Ícones da MPB: os 80 anos de Nara Leão e os 40 anos sem Elis Regina

O dia 19 de fevereiro marca os 40 anos sem Elis Regina e os 80 anos de nascimento de Nara Leão Wikimedia Commons

Quis o destino que o dia 19 de janeiro unisse por definitivo duas sumidades brasileiras, mulheres que ao mesmo tempo são as maiores intérpretes de nossa música e detentoras das mais firmes, ousadas e intransigentes (além de extremamente populares) personalidades de nossa história.

A capixaba Nara Leão nasceu há 80 anos, naquele dia que, 40 anos depois, encerraria a vida da gaúcha Elis Regina. Entre 1942 e 1982, as duas não apenas quebraram barreiras sociais ao mostrar o que era uma mulher moderna ao mesmo tempo em que forjaram, cada uma à sua maneira, os pilares da fundação que ainda chamamos de MPB.

As duas vêm passando por um momento raro em nossa história, país que infelizmente cresceu assistindo à incineração, muitas vezes literal, do próprio passado.

O século 21 vem trazendo documentários, cinebiografias, programas feitos para canais de streaming, podcasts, canais no YouTube, musicais, livros e exposições, que conseguem revisitar heroicamente nosso passado.

O filho de Elis, João Marcello Bôscoli, coordena uma série de ações relacionadas a manter viva a memória de sua mãe desde que relançou, em 2004, a edição de luxo do clássico álbum “Elis & Tom”, que a gaúcha gravou com Tom Jobim no exterior, em 1974.

Mas o grande evento do início de 2022 é a série documental “O Canto Livre de Nara Leão” (Globoplay), dirigida pelo cineasta Renato Terra. O próprio diretor é um dos protagonistas desta fase de resgate de nosso passado musical recente e, ao lado do codiretor Ricardo Calil, filmou os documentários “Narciso em Férias” (2020) sobre o exílio de Caetano Veloso, “Uma Noite em 67” (2010), sobre o festival da canção da TV Record daquele ano, e “Eu sou Carlos Imperial” (2015), sobre o empresário picareta que inventou a Jovem Guarda, Tim Maia e Wilson Simonal.

Nara Leão com Chico Buarque, em 1977 / Acervo Pessoal

Montada por Jordana Berg, com pesquisas de Julia Schnoor e consultoria da filha de Nara, Isabel Guedes, a série de Terra é um primor. Divide a breve vida de Nara em cinco episódios que costuram seu encanto angelical, sua deliciosa e pequena voz à sua atitude sem meias palavras e tom recatado, mostrando como ela sempre esteve à frente de movimentos musicais antes mesmos de eles se perceberem como tal, caindo fora sempre que começavam a fazer sucesso.

Foi assim com a bossa nova, com a canção de protesto, com o tropicalismo e tantos outros, sempre se envolvendo com novos artistas enquanto fazia tudo como queria, desafiando quem fosse, de donos de gravadora até o próprio regime militar de 1964.

Tudo isso ilustrado com maravilhosas imagens em vídeo, fotos e entrevistas que mostram Nara com as mesmas convicções em todos os momentos de sua carreira. Seja dando uma entrevista para o amigo Sergio Cabral, em programas de TV nos anos 1980 – ou até Glória Maria, Marília Gabriela ou Leda Nagle – ou para o programa “Ensaio” de Fernando Faro, Nara está sempre certa sobre o que quer.

O “Canto Livre” também acerta ao deixar as músicas tocarem inteiras, em vez de assistirmos apenas a trechos das canções – um dos trunfos de ser uma série, em vez de um longa-metragem (o mesmo aconteceu com a recente série sobre os Beatles, “Get Back”).

“A ideia de fazer uma série sobre a Nara Leão nasceu da percepção de que muita gente não conhecia a trajetória dela. Ela é uma das pessoas mais importantes do século 20 no Brasil e não tem o reconhecimento que merece.”
Renato Terra, cineasta

“Quando comecei a fazer documentários, o João Moreira Salles me disse uma frase do Alberto Cavalcanti que nunca saiu da minha cabeça: ‘Não trate de assuntos generalizados: você pode escrever um artigo sobre os correios, mas deve fazer um filme sobre uma carta’. A Nara é a nossa carta para entender não só a cultura brasileira, mas uma ideia de País”, diz o diretor, listando em seguida os feitos da cantora:

“Foi protagonista da bossa nova e rompeu com o movimento. Gravou Cartola, Zé Keti, Nelson Cavaquinho com as harmonias da bossa nova e criou ali o que a gente conhece por MPB. Gravou, do seu jeito, João do Vale, Fagner, Geraldo Azevedo e apresentou a música de várias regiões do nordeste a um público que tinha preconceito. Ela uniu dois lados diferentes construindo uma coisa nova ali no meio. Rompeu preconceitos na música, na cultura, no comportamento. Nara foi a ponte.”

Além de ter revelado talentos como Chico Buarque e Maria Bethânia, apenas para ficar nos nomes mais conhecidos.

Nara também era uma personagem importante por desafiar o comportamento da época. Vestia-se como queria e pela primeira vez expôs joelhos femininos no palco, algo impensável no começo da década de 1960.

Não gostava que dissessem como ela deveria se portar e simplesmente saía se não concordasse – tanto que não compareceu à clássica foto da capa do disco “Tropicália” ou “Panis et Circensis” (1968), surgindo apenas como um retrato segurado por Caetano Veloso.

Em breve, Elis ganha uma novo documentário, “Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você” / Reprodução

Disse que o exército brasileiro não servia para nada em plena ditadura e no dia seguinte foi defendida pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, que perguntava num poema “quem tem medo de Nara Leão?” publicado no jornal. E justamente ela criava desafetos no caminho – entre elas, Elis Regina.

“Era uma discussão franca e direta, Elis nunca mandava recado”, lembra João Marcelo Bôscoli, filho da Elis. “Teve uma reunião de cantores que a Elis, na frente da Nara e de todo mundo, perguntou se aquilo era mesmo uma reunião de cantores. ‘Se é, o que a Nara está fazendo aqui?’ Ela realmente achava que a Nara não era uma cantora. A rivalidade era nesse nível. Acho engraçado, meio cultura pop, mas tem um pouco de dor, porque são duas pessoas que são muito importantes. Isso aconteceu na juventude das duas e não se prolongou na vida adulta e a rivalidade entre artistas é muito comum. Artista não gosta muito um do outro, a estrela é pontiaguda”, brinca o produtor musical.

Ao contrário de Nara, Elis vem sendo resgatada em diferentes obras nos últimos anos. Além dos relançamentos coordenados por Bôscoli, que ainda relançou os discos “Falso Brilhante” (1976), “Elis” (1972) e “Elis” (1980) todos com tratamento luxuoso, a cantora gaúcha também foi revisitada na peça “Elis – A Musical” (2014), com direção de Dennis Carvalho e texto de Nelson Motta, e no filme “Elis” (2016), de Hugo Prata, com a atriz Andreia Horta no papel da cantora, que também deu origem à série “Elis – Viver é Melhor Que Sonhar”, daquele mesmo ano. Mas não parou por aí.

Outros projetos estão sendo feitos para coincidir com o aniversário de quarenta anos de sua passagem. Um dos mais aguardados é o documentário “Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você”, produzido pelo canal Arte1, com direção de Roberto de Oliveira.

Ele teve acesso a quase oito horas de material inédito, entre áudios e vídeos, da gravação do clássico disco de 1974 em que Elis Regina pediu para gravar com Tom Jobim, criando um clima tenso no estúdio norte-americano que gerou um dos maiores discos da música brasileira.

Há uma expectativa enorme pelo projeto, não só por ter tanto material nunca visto, como pelo fato de que ele já vem sendo produzido há mais de uma década.

O outro projeto é um seriado produzido pelo canal HBO que vai trazer imagens de programas de TV, shows e entrevistas que a cantora gaúcha deu em países como Bélgica, França, Portugal, México e Alemanha. Dirigido por Lea Van Steen, o projeto traz três episódios que têm, como fio condutor, uma longa entrevista feita com João Marcello, que acaba por batizar a série de “Elis por João”.

João Marcello ainda comenta sobre outros, como a peça infantil “Pimentinha – Elis para Crianças”, dirigido por Diego Morais e fala sobre o projeto que está fazendo ao lado do ilustrador Gustavo Duarte, que já trabalhou com os estúdios de quadrinhos norte-americanos Marvel e DC. de transformar a cantora num desenho.

“A ideia original é um livro, mas a gente quer muito que vire uma animação”, explica o filho da cantora, que ainda promete versões em Dolby-Atmos, com qualidade sonora ainda melhor, para os discos “Elis & Tom” e “Falso Brilhante” ainda esse ano.

“E a gente só está esperando o estado brasileiro reabrir para conseguir fazer um documentário só com entrevistas em áudio com ela”, explica João Marcello, que está desenvolvendo este projeto com o diretor Hugo Prata. Ele conta que tem um acervo enorme de entrevistas da mãe que, por não serem em vídeo, não são reproduzidas, como um cassete de uma hora de conversa entre Elis e Vinícius de Moraes. Bôscoli ainda fala sobre projetos que envolvem moda e até perfumaria, mas são para um futuro próximo, não para este ano.

“A Elis além de ser uma monstra da interpretação, desta voz poderosa, ela também é dramática”, lembra a radialista Patricia Palumbo. “Você pode achar que a Elis chorando em ‘Atrás da Porta’ é exagerado, mas é lindo e isso combina com o brasileiro. É o romântico esgarçado que a conecta, por exemplo, com a Marília Mendonça. A Nara é o contrário, é o cool. A Nara era o Mario Reis se a Elis fosse o Orlando Silva ou o Francisco Alves.”

“A bossa nova é um filtro ‘embranquecedor’ e universitário da música brasileira, não tinha um negro ali e as questões negras eram cantadas por brancos”, continua o jornalista Júlio Maria, autor da biografia “Elis Regina: Nada Será Como Antes” (Master Books).

“A Nara rompe com isso e faz o espetáculo Opinião, com Zé Kéti, João do Vale e Nelson Cavaquinho e inclui o samba na bossa nova, que só aí foi legitimado como algo pertencente à música popular brasileira. E a Elis, por sua vez, tinha o Fino da Bossa, com o Jair Rodrigues. No disco ‘Dois na Bossa’, ela canta um pout-porri de sambas de morro.”

“Nara é uma personagem esquecida e injustiçada da música brasileira”, completa o biógrafo de Nara Leão, o jornalista Tom Cardoso, autor de “Ninguém Pode Com Nara Leão” (Planeta). “Ela saiu da bolha da zona sul carioca e foi influenciar os marmanjos do cinema novo e do teatro. A pesquisa musical que ela fez na Bahia, quando ela levou o gravadorzinho no Teatro Vila Velha, a fez descobrir Caetano, Gil e Bethânia.”

“Como ela não se sentia na obrigação de cumprir a liturgia que o artista precisa cumprir, gravar sucessos, fazer shows e ter público pra isso, ela tinha muito mais tranquilidade pra gravar um repertório que ela gostava mesmo, sem ingerência de gravadora.”

“Conhecendo a Elis como biógrafo e crítico, e sei que ela se incomodava com o feito de outras cantoras, dá para entender como a postura da Nara a incomodava também”, continua Júlio. “A Nara, por sua vez, não estava nem aí, ela não gostava desse buxixo de showbiz, ela não queria estar nisso. 30

Júlio também nota o fato das duas terem se relacionado com o compositor Ronaldo Bôscoli, que foi namorado de Nara na época da bossa nova e casou-se com Elis em 1967.

“O mais impressionante era a falta de vaidade da Nara, como ela estava totalmente a serviço da música”, completa Palumbo. “São berços diferentes: a Elis buscou o caminho artístico como forma de sobrevivência, a Nara já nasceu bem. Essa non-challance da Nara você só pode ter quando você está numa situação confortável.” “São duas artistas muito importantes e totalmente antípodas”, emenda Cardoso.

“A Nara era low profile e a Elis, a despeito de ser a maior cantora do país, era insegura, sempre se sentia ameaçada. A Nara queria o menor contato possível com o público, queria ser dona de casa. A Elis abraçou a carreira dela sempre com muita ambição. E há as diferenças políticas: a Nara se posicionou contra a ditadura e foi exilada por isso e a Elis só teve uma engajamento maior um pouco mais pra frente. É só ver a história da passeata contra a guitarra elétrica em 1967, um ano antes do AI-5 a Elis saiu às ruas pra protestar contra a guitarra, quando a linha dura do exército já estava no comando e estava pronta para radicalizar. A Elis não pode ser acusada de entreguista, mas ela não é uma cantora que foi fundamental pro fim da ditadura, cantando ‘O Bêbado e o Equilibrista’.”

“A morte prematura das duas (Nara morreu vítima de câncer aos 47 anos, em 1989) não permitiu que elas atingissem a maturidade que talvez as tornassem amigas – ou ao menos concordassem”, conclui Júlio. “Tenho certeza que as duas estariam do mesmo lado, defendendo as mesmas coisas e indo contra os mesmos inimigos. A rivalidade se dilui hoje em dia numa confluência artística muito interessante.”

As informações são da CNN

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