Tragédia e descaso no Carnaval mostram que poder público só quer a folia do camarote

O Carnaval fora de época de 2022 foi pensado para celebrar uma trégua da pandemia da Covid-19 após o avanço da vacinação. Mas a realidade deu mais uma prova cruel de que a esperança é reservada apenas para quem pode pagar por ela.

Enquanto famosos se aglomeravam em camarotes com buffet de comida japonesa, drinks à vontade e shows exclusivos por ingressos que chegavam a R$3 mil por cabeça, o Carnaval do povo carioca que desfilava na Sapucaí teve tumulto, falta de segurança e uma tragédia: Raquel Antunes da Silva, de 11 anos, teve as pernas prensadas entre um carro alegórico da escola de samba Em Cima da Hora e um poste na rua Frei Caneca no fim da noite de quarta-feira (20). Ela foi internada no Hospital Municipal Souza Aguiar em estado gravíssimo e teve uma perna amputada, mas não resistiu e morreu dois dias depois.

Desesperada, a mãe de Raquel, Marcela Portelinha, precisou ser amparada para subir as escadas até a capela durante o velório da filha no cemitério do Catumzi, centro do Rio de Janeiro. “Eu quero minha menina, isso não pode ficar assim”, gritou. Em entrevista para a Globo, Marcela afirmou que não recebeu nenhuma ajuda da escola de samba ou da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.

Em apuração, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) afirmou que o desfile na Sapucaí violou normas de segurança pré-estabelecidas, como o cuidado com crianças e adolescentes na concentração e dispersão.

A Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Lierj) e a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) afirmaram, em nota oficial, que “os processos de aprovação das licenças de responsabilidade das escolas do grupo especial foram cumpridos”. Vale lembrar que, um dia antes dos desfiles na Sapucaí, a prefeitura do Rio de Janeiro ainda não tinha obtido o alvará do Corpo de Bombeiros para o uso do Sambódromo.

Sozinha, Marcela ficou desamparada diante da falta de protocolos adequados para os desfiles na Sapucaí, e precisou ser amparada pelos foliões para conseguir ir embora da avenida e acompanhar a filha no hospital.

Embora o Carnaval brasileiro seja fundamentalmente uma festa de rua feita pelo e para o povo, a crescente privatização do feriado transformou a data em um grande leilão de quem paga mais, precarizando a estrutura voltada para a população e focando os esforços e direcionamento de verba para camarotes privados.

Enquanto uma mãe pobre e preta se desesperava com a morte da filha e a falta de responsabilização por parte do poder público, o foco estava nos camarotes dos famosos e os espaços exclusivos da Sapucaí.

Falta de estrutura

(Divulgação)

Não foi só o Carnaval das escolas de samba que sofreu com problemas de estrutura: quem compareceu aos blocos de rua improvisados no Rio de Janeiro e em São Paulo sofreu com a recusa de ambas as prefeituras de viabilizar um Carnaval público e com blocos de graça.

Em vez dos tradicionais bloquinhos de rua, as únicas festas aprovadas eram as festas privadas, que custavam caro e já estavam com ingressos esgotados semanas antes das festividades. Para quem não podia pagar e queria curtir o Carnaval da forma tradicional e popular, o jeito foi ir às ruas em blocos improvisados.

Sem a programação aprovada pelas prefeituras, blocos tradicionais de ambas as capitais fizeram suas divulgações por grupos de Whatsapp, Instagram e um excel compartilhado que trazia nomes dos blocos, percurso e horários no Rio de Janeiro e em São Paulo. Quem compareceu a qualquer um dos blocos percebeu como a falta de apoio do poder público precarizou a situação: sem estrutura, o público ficou sem acesso a banheiros químicos, organização de esquemas de trânsito, transporte público e serviços médicos. A falta de intervenção das prefeituras também fez com que não houvesse acordo para venda de cerveja por revendedores com preço tabelado, deixando o consumo mais caro e com opções perigosas, como bebida em garrafas de vidro.

Sem alvará para os blocos, faltou qualquer tipo de segurança e operações especiais da Polícia Militar e Guarda Civil Metropolitana. “Não temos tempo hábil para providenciar o plano de emergência, as rotas, [contratação de] ambulância, bem como a Polícia Militar também não consegue disponibilizar efetivo necessário”, afirmou em coletiva de imprensa o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB). Nas ruas do Rio de Janeiro, os blocos cumpriram o que prometeram ao trazer música, animação e cultura popular pelos cortejos no centro, mas a falta de segurança era gritante: os arrastões tomaram conta de várias ruas pelo entorno dos principais blocos, e vídeos que circulam nas redes sociais mostraram assaltos e correria na Avenida Presidente Vargas.

Considerando que o Carnaval é uma festa popular e a constituição brasileira garante o direito à cultura, qual a validade e a representatividade de um evento que só se preocupa com a estrutura e a segurança dos camarotes?

Legado histórico

Desfile da Unidos de Vila Isabel sobre Martinho da Vila (ROBERTO FILHO / BRAZIL NEWS)

Mesmo diante dos problemas de estrutura e verba, as escolas de samba trouxeram para o público o brilho que o brasileiro espera do Carnaval, com homenagens importantes e representativas como o “Batuque ao Caçador”, enredo para Oxóssi (o orixá das florestas) da Mocidade Independente de Padre Miguel; o “Fala, Majeté!”, homenagem da Grande Rio para a figura de Exu; o samba “Ka ríba tí ÿe – Que Nossos Caminhos Se Abram”, e o enredo da Paraíso do Tuiuti lembrando o legado e resistência do povo preto, relembrando personalidades como Barack Obama e Nelson Mandela.

A Portela também exaltou a cultura africana com um enredo que retrata a simbologia dos baobás, árvores gigantescas e milenares originárias da África. Desenvolvido pelos carnavalescos Renato Lage e Márcia Lage, “Igi Osè – Baobá”, mostrou a importância dos baobás através de aspectos como ancestralidade, religiosidade, identidade e memória, entre outros. Márcia Lage explica que a presença de baobás no Brasil e o legado cultural dos milhões de seres humanos escravizados trazidos da África também tiveram destaque no desfile da escola.

A Unidos da Tijuca contou a história do guaraná no enredo “Waranã – A reexistência vermelha”, que falou sobre ciclos, descendências e resistência. Desenvolvido pelo carnavalesco Jack Vasconcelos, conhecido por abordar temáticas políticas na Sapucaí, a escola mostrou a importância da luta dos povos indígenas. A Vila Isabel também celebrou a cultura negra com uma linda homenagem para Martinho da Vila.

Diante de um Carnaval marcado pela tragédia envolvendo Raquel e o descaso sentido pelos foliões e público geral em um Brasil no qual, de 14 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, 75% são pretos, fica claro que a cor da pele determina a trajetória do indivíduo nas festividades.

Enquanto os camarotes são tomados majoritariamente por pessoas brancas, ricas e com pouquíssimas ligações profundas com a cultura carnavalesca de rua e das escolas de samba, é na rua e na avenida que se concentra o verdadeiro Carnaval brasileiro. É papel do poder público garantir que os verdadeiros foliões e mestres culturais do Carnaval tenham não só o reconhecimento como a estrutura, as verbas e o respeito que merecem para que o Carnaval não se torne um grande camarote colonizador.

As informações são do Yahoo.

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