Expostas aos riscos das ruas do Rio, crianças são vítimas de miséria e exploração

Menina oferece balas a quem passa pela Cinelândia, à noite, no Centro do Rio. (Foto: Domingos Peixoto - Divulgação)

Era mais uma noite na Cinelândia, no Centro do Rio. Um ato político acontecia nas escadarias da Câmara de Vereadores, acompanhada por policiais militares, enquanto o happy hour começava naquela quinta-feira, 13 de outubro.

Despercebida, Clara*, aparentando ter 6 anos, estava com o semblante cansado e se escorava no parapeito do Palácio Pedro Ernesto após subir pela quinta vez os degraus da casa de leis. Após menos de um minuto descansando, com duas caixas de balas nas mãos, a menina voltou a tentar vender os doces a todos que participavam do ato: “uma bala é três, duas é cinco”, dizia.

A cena ocorria às 20h daquele dia e fazia 40 minutos que ela estava longe das vistas da mulher que a acompanhava — sentada em um banco na praça mexendo no celular. Em um Rio desigual e acostumado a viver com cenas de miséria a cada esquina, a linha entre a necessidade e a exploração é tênue.

A triste rotina de Clara foi um dos episódios que o GLOBO flagrou de crianças em situação de vulnerabilidade em diversos pontos da cidade: um retrato do que o carioca normalizou a ver, e ignorar, em sua paisagem.

Naquele dia, a menina recebeu da mulher as caixas de doces que teria que vender. Sem supervisão por quase uma hora, ela abordou dezenas de pessoas. Depois, a criança voltou e deu à mulher todo o dinheiro que tinha conseguido.

Enquanto ela contabilizava os ganhos, a menina aproveitou para correr em uma lanchonete, usar o banheiro e trocar o dinheiro que tinha ganho com suas vendas por uma nota de R$ 50. De novo, fez tudo sozinha.

Logo que voltou, recebeu uma segunda caixa de bala para vender a outro grupo que escutava samba na praça. Para chegar até lá, Clara precisou atravessar a linha do VLT. Mas, distraída, não percebeu a aproximação do veículo. Por sorte, o condutor estava atento e, ao perceber a menina nos trilhos, buzinou para que ela saísse.

Uma semana depois, também à noite, Clara continuava tentando vender suas balas longe dos olhares da mesma mulher que a acompanhava. Querendo brincar, desejo normal para uma criança de sua idade, ela parou as vendas por um momento e correu em direção a uma pequena árvore com galhos baixos.

Pulou, e arrancou uma folha. Repetiu a brincadeira por três vezes até ser chamada atenção por dois homens que ali bebiam cerveja enquanto escutavam jazz.

O comércio ambulante de crianças e adolescentes nas ruas está, desde 2008, na lista das Piores Formas de Trabalho Infantil. A norma é regulamentada por um decreto de 2008 e tem origem na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o Brasil é signatário desde 1999.

A lei brasileira permite o trabalho de menores de 18 anos apenas a partir dos 16 como jovem aprendiz. O decreto explica que a venda de produtos nas ruas por menores, como no caso de Clara, expõe às crianças à violência, drogas, assédio sexual e tráfico de pessoas; exposição à radiação solar, chuva e frio; acidentes de trânsito e atropelamentos.

Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-RJ, explica que o Código Penal também prevê ser crime permitir que um menor de 18 anos “mendigue ou sirva a mendigo para exercitar a comiseração pública”.

Em casos extremos pode ser necessário também afastar a criança da família e a levar a um abrigo. Atualmente o Rio possui 25 unidades para receber menores de idade, com 501 vagas totais e 171 disponíveis atualmente. Há unidades que também podem receber toda a família.

— A situação do abandono da infância no Rio é alarmante. É uma falha da família, da sociedade e do Estado. A mera ausência de recursos financeiros não gera a destituição da família. Não significa que toda criança na rua está abandonada, mas é preciso ver se ela está sendo bem cuidada, se há relação de carinho, se frequenta a escola.

A linha entre ser uma família buscando sobreviver e a exploração é tênue. Nossa obrigação como sociedade é denunciar aos órgãos competentes, que vão analisar se ali há ou não um crime — diz.

‘Sem aula na semana’

Sob sol e calor na tarde do último dia 13, um homem pedia esmola num sinal na Avenida das Américas, no Recreio, junto de Fernanda*, de 9 anos. A cada sinal vermelho em frente à estação do BRT Gilka Machado eles passavam entre os carros: o pai carregava uma placa pedindo ajuda por estar desempregado e Fernanda uma boneca.

Os dois aparentavam estar sozinhos, mas do outro lado da rua estava a mãe, mexendo no celular e sentada em um parapeito — um dos únicos pontos com sombra dali. Durante as quase duas horas que o GLOBO acompanhou a família, a cena se repetia.

No dia seguinte, os três retornaram ao local. Por volta de 12h 30, desceram da estação do BRT e foram juntos ao sinal. Sob olhares de uma guarnição da PM que ali estava parada, o trio se levantou depois de 15 minutos. A mãe atravessou a rua e sentou em um banco. O pai e a filha pegaram um punhado de paçocas para vender entre os carros. Desta vez a menina levava uma placa em seu pescoço: “Amanhã é meu aniversário. Pode me ajudar a comprar meu presente?”.

Ao ser abordada pela equipe do GLOBO, a mulher disse ter outras duas filhas adolescentes em casa e que eles estão ali por necessidade. Ela conta que está com pendências em seu cadastro do CadÚnico para conseguir o Auxílio Brasil — realidade de 80 mil famílias cariocas na busca pelo benefício. A mulher diz que durante a pandemia moraram 8 meses nas ruas e atualmente pagam R$ 500 aluguel em Paciência, Zona Oeste.

— Tem dia que conseguimos R$ 100, R$ 150, mas estamos os dois desempregados e com três meninas em casa. Ela (a filha) não pede, não bate no vidro e não grita. E só vai junto do pai dela pois pede ir. Durante a semana costumamos a vir só os dois, mas essa semana ela não teve aula porque teve dois dias de festa, dia das crianças, outro dia a professora estava de TRE e hoje ela não teve aula. Quando vou atender o telefone fico com vergonha. As pessoas não entendem sua necessidade. Elas te xingam e te humilham. Aqui não é o melhor lugar (para a menina), mas é um apoio que dou para meu marido. Tem um ano que estamos ali e já corri muito aquele sinal vendendo, mas estou com trombose. Eu sei que ela fica exposta, mas quantas milhões de famílias estão expostas? — questiona a mãe da menina.

Mulheres presas

No início do mês uma operação da 14ª DP (Leblon) prendeu cinco mulheres acusadas de obrigar crianças a pedirem dinheiro em bairro na Zona Sul do Rio. Três delas estavam acompanhadas pelos respectivos filhos, e as outras três com meninos e meninas entre 5 e 12 anos “emprestados”.

Segundo o inquérito, o trabalho ao ar livre prosseguia mesmo em dias de chuva. Dados da secretaria municipal de Assistência Social, revelam que nos meses de Agosto e Setembro foram atendidos 105 casos na Zona Sul de “trabalho infantil e acesso à renda”, 64 na Grande Tijuca e três casos na Barra da Tijuca.

— A identificação dos casos que envolvem crianças e adolescentes ocorre através de um processo de trabalho planejado de aproximação, escuta qualificada e construção de vínculo de confiança com o público infanto-juvenil. Ao identificarmos quaisquer indícios de violação de direitos de crianças e adolescentes, encaminhamos o caso para apreciação do Conselho Tutelar — diz Fabiana Netto, coordenadora dos Serviços de Abordagem Social da prefeitura do Rio.

Como procurar ajuda para uma criança:

Central 1746 da prefeitura do Rio
Disque 100
Polícia Militar: 190
Conselho Tutelar da região: https://cmdcario.com.br/plantoes.php
Ouvidoria do Ministério Público: 127
Disque-Denúncia: 2253-1177

O empobrecimento da população é mais um elemento que torna complexo o cenário da vulnerabilidade infantil nas ruas do Rio. O Estatuto da Criança e do Adolescente é claro ao dizer que é responsabilidade da família, do poder público e da sociedade garantir os direitos desta parcela da população. Entre eles está o direito à saúde, à alimentação, à educação, e à dignidade.

Erica Arruda, coordenadora geral de Direitos e Conselhos da Secretaria de Assistência de Social do Rio, explica que quando casos semelhantes chegam ao Conselho Tutelar é preciso analisar cada caso e quais os motivos que levaram a pessoa até chegar naquela situação:

— A nossa relação de Conselho Tutelar é de confiança e não de polícia. Nosso trabalho é de sensibilização com uma equipe multidisciplinar. É caso a caso. Uma criança em situação de rua pode ali ter um crime, mas é preciso ter uma investigação. O problema que hoje temos uma pobreza absurda, em uma crise social, econômica e falta de emprego. E não é algo simples identificar as violações. Nossa primeira abordagem é de entender a situação daquela família, das necessidades que ela precisa. Se tem a insistência, um adulto próximo, podemos entender que pode ser um crime e encaminhar a pessoa para a delegacia. — diz Erica.

Procurada, a PM informou que “embora a principal missão constitucional da Corporação seja o policiamento preventivo e ostensivo com foco na segurança pública, os policiais militares atuam também em apoio a outros órgãos governamentais em ações sociais e de ordenamento urbano”.

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