Enterro solitário e caixão fechado: o drama dos familiares de mortos na tragédia de São Sebastião

Nesta quarta-feira, os corpos das vítimas já não podiam ser reconhecidos visualmente

Maria da Anunciação da Silva, 79 anos, estava em casa com outras 12 pessoas da família e vizinhos na madrugada de sábado para domingo de carnaval na Vila Sahy, em São Sebastião (SP), quando uma árvore despencou no teto, fazendo com que todos acordassem e alguns saíssem correndo da casa. Era o prelúdio da tragédia. Dona Maria do Bole, como era conhecida no bairro, morreu em seguida, ao ser atingida na cabeça em meio a um deslizamento de terra que desalojou sua família.

O corpo de dona Maria, embora tenha sido encontrado rapidamente, só foi enterrado no início da noite desta quarta-feira após um périplo da família e dos amigos para liberar os restos mortais para o sepultamento.

Em meio à dor, o enterro foi realizado no Cemitério Municipal de São Sebastião. Da família, só pôde comparecer uma de suas netas, a fisioterapeuta Stefany Neri da Silva, de 22 anos, uma das sobreviventes dos deslizamentos do bairro de São Sebastião mais afetado pelas fortes chuvas que acometeram a cidade nos últimos dias.

Nascida e criada na região do Sahy, Stefany mora em São Paulo desde o início da faculdade e foi à casa dos pais para passar o carnaval. No local, entre parentes, vizinhos e amigos haviam 13 pessoas. Com o acidente, ela perdeu a avó e teve soterrados por horas a mãe, Rosana Neri da Silva; o pai, Waldemir; e a irmã, Jéssica Tatiane.

Os três foram resgatados com ferimentos. Os pais se recuperam de hematomas em casa e Jéssica está internada no Hospital Regional do Litoral Norte, em Caraguatatuba, com uma fratura na perna.

O corpo de dona Maria foi retirado dos escombros e levado à funerária Campo Vale, no centro de São Sebastião, onde funciona uma unidade improvisada do Instituto Médico Legal que faz o reconhecimento das vitimas.

Sem poder ir presencialmente ao local por estar desalojada, ferida e cuidando do marido, Rosana pediu a Maria do Carmo da Silva, de 62 anos, amiga íntima de dona Maria, que fosse reconhecer o corpo da amiga. A amiga fez o reconhecimento, mas não pôde sair de lá com o corpo.

— Não conseguimos liberar o corpo porque exigiram a presença de algum parente que viesse assinar a papelada e a Rosana não podia. Então, a neta veio com a condição de não ver o corpo — afirma dona Maria do Carmo, que passou o dia na funerária com seu marido, Haroldo; a filha Yara e o bebê Yago, seu neto.

Stefany da Silva, neta de dona Maria Anunciação da Silva, que morreu soterrada em Vila Sahy, São Sebastião (SP) Maria Isabel Oliveira/Agência O Globo

Abalada, Stefany só conseguiu liberar o corpo por volta das 17h30 e, em razão do estado de preservação dos restos mortais, não houve velório. A neta acabou por ser a única familiar no sepultamento da avó. Na porta da gaveta em que o caixão foi colocado, escreveu à mão, com um pincel e tinta preta, o apelido da avó: Maria do Bole.

— É uma tragédia, ela era conhecida em todo o bairro. Se você vai à minha casa hoje, não diz que apenas uma pessoa morreu. Ali não tem mais nada, nem do salão de cabeleireiro que meu pai estava construindo. Fica só a lembrança — conta ela.

O drama da família Neri é similar ao de dezenas de outras vítimas. No quarto dia após a tragédia, a maioria dos corpos está em decomposição e não pode mais passar por velórios longos, de acordo com a prefeitura de São Sebastião. Por isso, o serviço de reconhecimento foi centralizado na funerária. Ali, têm sido realizados testes de impressões digitais, provas de sangue e coletas de DNA.

Para as famílias locais, a prefeitura tem custeado velório e enterro. Aos familiares de vítimas de fora da cidade, oferece ainda o translado gratuito.

Nesta quarta-feira de Cinzas, a carreteira Tatiane Cordeiro, de 41 anos, era uma das mais abaladas entre as familiares de vítimas da tragédia na funerária. Morreram soterradas em Boiçucanga duas de seus cinco filhos, Thaline e Ana Vitória, de 16 e 7 anos, respectivamente.

As duas tinham vindo passar o carnaval na praia para conhecer o mar. Vieram com um amigo da mãe, o eletricista Ronei Olivarez, de 51 anos, e seu filho, Cristiano, de 10. Nenhum sobreviveu.

Tatiane, que ficou em São Paulo para cuidar do filho Gabriel, de 15 anos, que tem esquizofrenia, não conseguiu mais contato com as filhas no domingo à noite. Nesta segunda, foi chamada a São Sebastião e ao chegar, na quarta-feira, foi informada das mortes.

A tragédia se soma, ainda, a uma situação social debilitada. Tatiane deixou há seis meses a cidade de Encruzilhada (BA) para morar em São Paulo na esperança de tratar de um quadro de insuficiência cardíaca do filho mais velho, Tales, de 27 anos. O rapaz, porém, morreu em setembro.

— Desde então, fiquei sem dinheiro porque tive despesas quando Tales morreu e não tive mais condições de arcar com o aluguel. Fui morar em uma ocupação na Mooca, onde conheci o Ronei e fiz amizade. Minhas meninas insistiram para ver o mar, eu deixei e aconteceu essa tragédia — afirma ela.

Beneficiária do Auxílio Brasil, Tatiane foi trazida a São Sebastião por Cristiane Belotti, sobrinha de Ronei que só conheceu nesta terça-feira.

— Viemos para reconhecer os corpos, mas não foi possível vê-los ainda porque estão em decomposição. Eu e Tatiane pedimos para ver, mas ainda não sabemos se será possível — afirma. No fim da tarde, as duas foram informadas de que o procedimento ainda demoraria e, por isso, precisaram dormir uma noite em São Sebastião.

As informações são do Jornal O GLOBO.

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