‘Vacina ainda não é passe livre, é como se estivéssemos de colete à prova de bala no meio de um tiroteio’, diz cientista política

Buscar a responsabilização de gestores públicos é importante na CPI da Covid-19, mas isso não deve obstruir a cobrança urgente de uma resposta melhor à pandemia, diz a cientista política Lorena Barberia, professora da Universidade de São Paulo (USP).

— A responsabilização é importante, porque ocorreram muitas mortes evitáveis — diz. — Ao mesmo tempo, temos o problema de que a pandemia não acabou.

Barberia publicou, com a imunologista Ester Sabino e a infectologista Sílvia Costa, um artigo na revista Nature Medicine no qual aponta a falta de coordenação nacional como um problema crucial na resposta do Brasil à Covid-19.

Em entrevista ao GLOBO, a cientista, uma das pesquisadoras do grupo Observatório Covid-19 BR, fala sobre como acredita que a sociedade pode buscar preencher essa lacuna sem deixar de cobrar o governo e responsabilizá-lo.

Com o governo federal hesitando em assumir a coordenação nacional da pandemia, como isso poderia ser organizado de baixo para cima, com a sociedade civil e outros entes?
Sendo realista, é claro que a coordenação do presidente e o ministério são importantes. Mas essa falta coordenação não precisa ser resolvida necessariamente pelo governo federal.

Existem iniciativas multi-resposta, que envolvem a sociedade civil e governos locais, e nós podemos pensar que precisamos coordenar e caminhar juntos numa mesma direção. Não está ajudando o fato de que a gente está cada um por si, cada um procurando desenvolver sua própria resposta.

Por exemplo: qual é o risco de um estado para flexibilizar as medidas de distanciamento? Cada estado está desenvolvendo diferentes critérios. Isso não é uma questão que depende do governo federal, mas é o tipo de medida que poderia se procurar estabelecer de modo mais coerente ao longo da federação.

Ajudaria para um estado que precisa adotar uma medida mais rígida saber que os outros estados estão adotando o mesmo critério. Mas o que a gente vê muito é que cada um faz sua própria receita. A gente não está pensando no problema da federação em um país continental que tem que ser coordenado.

Vocês destacam dois municípios paulistas no artigo que publicaram: Araraquara que implementou um lockdown, e São Caetano do Sul, por sua política ativa de vigilância epidemiológica. Essas cidades podem servir como exemplos nacionais?
Sim. O que estamos destacando é que algumas medidas podem ser muito bem sucedidas mesmo nos países com recursos limitados e contexto desafiador. Mas é importante ver que Araraquara não fez só o lockdown. Esse município é um dos poucos lugares em que eles alinham uma política de testagem com as medidas de distanciamento físico. Eles têm uma política em que, se você testa positivo, recebe uma cesta básica para ficar em isolamento em casa. Existe uma coerência no pacote, não só um lockdown.

O interessante em São Caetano do Sul é que a estratégia de testagem com vigilância está integrada à estratégia de saúde da família. Com os recursos que a gente tem e os desafios que a gente tem localmente, existem exemplos bem sucedidos.

Só que sozinho você não consegue enfrentar o desafio que é a pandemia. Você precisa de coordenação. Em Araraquara, um problema grande agora é que os municípios vizinhos não aderiram e não estão alinhados com o que eles estão procurando implantar. É muito difícil ser uma ilha.

Num país continental que está superconectado ao mundo em geral e possui grande circulação intermunicipal, nós não podemos pensar que uma ilha vai se salvar.

O governo federal adotou discurso da vacina como um passe livre imediato para o fim do distanciamento social. Isso vai nos causar problemas?
A analogia que eu uso para explicar isso é a de sair de casa no meio de um tiroteio. Nós estamos em um momento de risco elevado de tiroteio, e algumas pessoas já compararam a vacina a um colete à prova de bala. Você se posicionaria no meio de um tiroteio mesmo estando com colete à prova de bala? Nós precisamos cuidar de que o tiroteio acabe. Não adianta a gente investir só nos coletes, porque isso não vai resolver o problema sozinho agora.

Há alguns países muito bem sucedidos, com coberturas vacinais altas, que continuam aplicando testes, continuam com medidas coerentes de distanciamento. Eles implantam de novo estratégias de controle quando vêem um surto. Mesmo os lugares que vacinaram loucamente não saíram da pandemia fazendo só isso. Saíram porque tinha uma coerência.

As vacinas são muito importantes, mas a gente não pode vender uma ilusão. É incrível ver que nas peças publicitárias de algumas campanhas de vacinação aparece a pessoa tirando a máscara. A pessoa toma a primeira dose e já sai assim.

No artigo da Nature Medicine vocês usam muitas metáforas bélicas: “guerra contra a Covid”, “chamado às armas”, “front de batalha”… Essas analogias são direcionadas a um público específico dentro do governo?
Nós somos três mulheres cientistas, não militares, procurando empregar esse diálogo militar para alertar. Uma coisa curiosa é que algumas experiências nas forças armadas no Brasil são casos claros de sucesso do controle da pandemia nesse meio, de modo diferenciado daquele que ocorre no governo federal. Dessa forma, nós estamos querendo dizer que queremos conversar, não só atacar.

Além dos erros do governo federal, o Brasil está sofrendo com promessas quebradas por parte de parceiros internacionais, sobretudo aqueles que atrasaram entrega de insumo farmacêutico ativo (IFA) para para vacinas. Temos de cobrar deles também?
Não é só a questão do IFA. Existem infinItos reagentes e insumos. Para monitorar o espalhamento das novas variantes, por exemplo, faltam alguns insumos. A gente tem que ir atrás, importar no mercado internacional. Estamos muito presos ao contexto global, que não está sendo favorável aos países em desenvolvimento.

Na CPI está se dando muito destaque à recusa das ofertas de vacina da Pfizer, como se só isso fosse nos salvar, mas essa vacina não estava disponível para chegar nos primeiros seis meses ao Brasil. Não era uma saída milagrosa. Existe uma disputa geopolítica que a gente precisa entender. Existem muitas restrições no mundo hoje para exportação de alguns materiais.

A Argentina exportou IFA de vacina da AstraZeneca para o México fazer o envasamento, por exemplo, que por sua vez dependia de frascos a serem exportados pelos Estados Unidos. Mas nesse caso a exportação não foi autorizada e tiveram que enviar o IFA da Argentina para o México, depois do México para os EUA, depois reexportado para o México, depois reexportado para Argentina. Essa tragédia levou seis meses, atrasando a vacina de um IFA que já estava pronto.

Esse é um problema real no mundo hoje. Não é só a China que está atrasando IFA. É algo muito mais complexo.

Mas o isolamento diplomático em que o Brasil se colocou não torna isso ainda pior?
Isso está super prejudicando. Não estamos conseguindo mobilizar e utilizar todas essa infraestrutura das relações exteriores, que é muito importante neste momento. O governo eficaz é aquele com pessoas que entendem essa geopolítica, sabem argumentar, mobilizar, ir atrás, colaborar… Mas nós estamos geopoliticamente fracassados na arena internacional.

Em parte isso ocorre por a gente ter se recusado a assinar os acordos (de aquisição de vacina) no ano passado. Em muitos momentos críticos em que precisávamos estar junto com outros países, a gente não entrou nas alianças, não liderou. Isso nos está custando. Não estamos fazendo a geopolítica pública de diplomacia nem aquela de negociações em privado.

A pressão pública estimulada pela CPI da Covid-19 está fazendo política do governo para a pandemia melhorar?
Estou preocupada, porque existem temas com vacina, testagem e distanciamento físico, que merecem mais atenção na CPI. Muita atenção ali está sendo dada para coisas que não ajudam a salvar mais vidas neste momento da pandemia. Essa discussão extensiva sobre “tratamento precoce”, por exemplo, eu vejo com sentimentos mistos. Ela é uma questão relevante, porque ainda existem médicos que estão receitando isso, mas alocar tempo demais para isso a CPI não está nos ajudando a saber como vamos sair do momento atual.

Nós chegamos a 500 mil mortes. Quantas delas ocorreram desde que a CPI começou? Às vezes a CPI passa a impressão de que temos sempre uma semana a mais para discutir, sem ajudar a mobilizar uma agenda. É importante levantar evidências de falhas, mas é preciso usar esse levantamento para pactuar uma nova agenda, uma nova forma de enfrentamento da pandemia.

Quantas horas, por exemplo, a gente ouviu de discussão sobre testagem na pandemia? Muito pouco. A gente vê às vezes uma única pergunta sobre testagem para 20 ou 25 questões sobre “tratamento precoce”. Isso não é compreensível, porque a gente não vai sair da pandemia se a gente não mudar a estratégia de testagem.

O esforço que se investe agora em responsabilizar e punir o governo não pode atrapalhar o diálogo com o governo para que ele melhore a política de Covid-19?
Não acho que vai ser fácil construir coordenação e consenso. Mas a gente tem que entender na prática que, mesmo que discordemos de tudo do governo, a gente tem que eleger prioridades e cobrar essas prioridades.

A discussão sobre a punição não ajuda a gente, hoje, a responder à pandemia. A gente tem esse dilema, que é muito difícil, e precisa estar ciente que precisamos tratar das duas questões.

A responsabilização é muito importante, porque ocorreram muitas mortes evitáveis, e o Brasil vai ter um legado trágico. Mas ao mesmo tempo temos o problema de que a pandemia não acabou e não está nem perto de acabar. Não sabemos para onde estamos indo, então precisamos começar a discutir como sair dela em 2021. Quais vão ser as prioridades e estratégias novas? Discutir punição para as mortes, apenas, não vai nos tirar da pandemia.

Tem questões importantíssimas que estão sendo negligenciadas e ignoradas. Insisto que a da testagem é uma delas, mas há outras áreas. E são áreas que não precisamos politizar, são áreas mais técnicas. Por que a gente ainda não comprou testes de antígenos em massa para distribuir pelo Ministério da Saúde? Essa é uma pauta boa para a CPI.

 

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