Terceiro dia de ataques no RN: o que pode estar por trás da onda de violência

Cidades do Rio Grande do Norte registraram ataques criminosos pelo terceiro dia consecutivo.

A violência marcou a madrugada de quinta-feira (16/3) na capital, Natal, e em outros oito municípios.

A circulação de ônibus voltou a ser suspensa em Natal após os novos episódios. Os trens interromperam seu serviço pela manhã.

A coleta de lixo, o atedimento em unidades básicas de saúde e o funcionamento de escolas da rede municipal também foram suspensos na capital.

Os ataques coordenados por uma facção criminosa vêm ocorrendo desde a terça-feira (14/3). Houve registros em ao menos 34 cidades do Estado.

O governo do Rio Grande do Norte afirmou que havia sido alertado sobre a possibilidade de ataques e que tomou medidas preventivas.

Mas isso não impediu tiros e incêndios em prédios públicos, comércios e veículos, que continuam mesmo depois da chegada da Força Nacional ao Estado.

Um suspeito integrar a facção que seria responsável pelos ataques e liderar os ataques foi morto em confronto com a polícia em João Pessoa, na Paraíba.

Foram presas 66 pessoas até agora, de acordo com o governo estadual. Uma pessoa morreu em confronto com a polícia e duas ficaram feridas nos ataques.

Também foram apreendidas armas, munições, artefatos explosivos, veículos, dinheiro e drogas.

A Força Nacional reforça a segurança no Rio Grande do Norte desde a quarta-feira (15/3).

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), afirmou que o contingente anunciado de 220 agentes deve estar até quinta-feira.

Dino afirmou que mais agentes podem ser enviados se for necessário.

A Polícia Rodoviária Federal também reforçou o patrulhamento no Estado.

Dino autorizou ainda uma força-tarefa de intervenção penitenciária, que atuará por 30 dias nos presídios para “a coordenação das ações das atividades dos serviços de guarda, de vigilância e de custódia de presos”.

A medida foi tomada em meio a uma crise na qual um dos motivos apontados pelos suspostos autores dos ataques são as más condições do sistema prisional do Estado, algo que foi reforçado por um órgão federal que fez vistorias em prisões locais.

O governo estadual afirmou, por sua vez, que as demandas não podem ser atendidas e acrescentou que os ataques seriam uma retaliação por ações de combate ao tráfico e ao crime organizado e que há indícios de que as ordens para as ações criminosas teriam partido de dentro dos presídios.

A governadora Fátima Bezerra (PT) reforçou publicamente que a força-tarefa não significa o sistema prisional do Estado esteja sob intervenção federal.

“Os presídios do RN encontram-se sob pleno controle da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária”, disse a governadora em suas redes sociais.

Bezerra afirmou que os ataques são “inaceitáveis” e “repugnantes”.

“|Todo trabalho está sendo feito para que os criminosos sejam presos, julgados e punidos com todo o rigor da lei”, disse.

Os motivos dos ataques

A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (Sesed) do Rio Grande do Norte afirmou que os ataques foram uma retaliação a ações de combate ao tráfico e ao crime organizado.

“Acreditamos que, com ações policiais anteriores, há 15 dias, onde houve um enfrentamento da segurança pública em relação a infratores, onde foi apreendida grande quantidade de drogas e armas, isso inquietou a delinquência a enfrentar o sistema de segurança pública”, disse o secretário de Segurança Pública e Defesa Social, Francisco Araújo, na terça-feira.

Araújo afirmou depois ao portal UOL que morte de lideranças de organizações criminosas em confronto com a polícia poderiam ter motivado os ataques.

No entanto, uma convocação – ou “salve”, no jargão criminoso – que circula pelo WhatsApp, supostamente de autoria da facção Sindicato do Crime, afirma que os ataques seriam uma resposta às condições do sistema prisional do Rio Grande do Norte, descritas como “degradantes”.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil concordam que o sistema prisional do Estado é um dos fatores que podem estar por trás das ações criminosas.

“Dizer que o que aconteceu é só uma retaliação é invisibilizar um problema maior”, diz a antropóloga Juliana Melo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisadora do sistema prisional e da área de segurança pública.

“Quanto pior a prisão é, mais violenta é a sociedade. Tudo o que acontece dentro do sistema prisional tem consequências para o que acontece do lado de fora. Nosso sistema prisional é marcado por violação de direitos humanos enormes, e o sistema potiguar consegue ser pior do que outros lugares do Brasil.”

O cientista criminal Ivenio Hermes, pesquisador do Observatório da Violência da UFRJ, destaca que foram tomadas algumas medidas tomadas ao longo dos últimos anos para que o poder público reassumisse o controle do sistema prisional do Estado.

“A ordens emanadas de dentro das prisões chegavam com facilidade até o lado de fora, onde os criminosos agiam conforme essas orientações. Houve desde então um cerceamento dessas informações, com maior controle de portarias, investimentos em raio-x e segurança, contratações de policiais e investimentos em treinamento, separação das facções”, diz Hermes.

No entanto, o pesquisador avalia que não houve um esforço na mesma medida para garantir melhores condições aos detentos.

“Mesmo com as melhorias para hermetização do sistema prisional, as melhorias do fator humano ainda estão aquém, então, as demandas por estas melhorias podem estar entre os fatores que causaram essa situação.”

A Sesed foi procurada pela BBC News Brasil para comentar o assunto, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.

Violações de direitos

Juliana Melo diz que a reforma do sistema prisional do Estado não impediu que os direitos dos presos continuem a ser violados.

“Há superlotação, agressões e tortura sistemáticas, privação de alimentos e de remédios, facções rivais continuam nos mesmos pavilhões, o que gera um grande pavor nas famílias dos presos… O fato é que as prisões do Rio Grande do Norte são verdadeiros campos de concentração.”

Em vistorias a cinco prisões do Estado, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, encontrou evidências de torturas físicas e psicológicas, falta de alimentação, desassistência em saúde e superlotação, entre outras violações dos direitos dos presosm, conforme noticiado pelo G1.

Em declarações à imprensa na noite de terça-feira e na quarta-feira, o secretário Francisco Araújo falou pela primeira vez sobre a convocação para os ataques e apontou que as reclamações de detentos das condições do sistema prisional são uma das “hipóteses” para o motivo dos ataques.

“Uma liderança de uma organização criminosa foi presa, e ele e outros dizem através de mensagens de WhatsApp que o Estado do Rio Grande do Norte é muito duro no controle do sistema prisional, que eles precisam viver em um ambiente mais confortável”, afirmou ao UOL.

Araújo disse que os presos revindicam “televisão, sistema de iluminação, visita íntima, coisa que o sistema prisional não está atendendo porque está cumprindo a lei de execução penal”, afirmou o secretário, de acordo com o G1.

Araújo afirmou ao UOL que o Estado “não tem condições” no momento de promover as melhorias reivindicadas pelos detentos e acrescentou haver indícios de que as ordens para os ataques partiram de dentro das prisões.

“Nós não iremos em hipótese alguma mudar as regras e fragilizar o sistema prisional. A regra continua dura e vai ser mais dura ainda. Inclusive, agora, foram suspensas todas as visitas.”

Araújo afirmou que o Estado tem o dever de garantir todos os direitos dos presos. “Mas, quando há ações como essa que está acontecendo agora, todos esses direitos são cada vez mais reduzidos e privados.”

Histórico de violência

O Rio Grande do Norte é um dos Estados mais violentos do Brasil, segundo o Atlas da Violência, um relatório anual produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada com a colaboração do FBSP.

Em 2019, de acordo com os dados mais recentes, o Rio Grande do Norte tinha a 2ª maior taxa de mortes por armas de fogo do país, a 7ª maior de homicídios e a 10ª de mortes violentas por causas indeterminadas.

“O Rio Grande do Norte teve historicamente pouco investimento em segurança pública, ficou abandonado por muitos anos. Não tinha investimento em material humano, em capacitação, em estudos para combater a criminalidade de forma inteligente, e, onde não tem isso, a criminalidade se expande”, diz Ivenio Hermes.

“Houve um esforço das forças de segurança desde 2018, mas ainda está aquém. A retomada recente do investimento é como tentar frear um trem em alta velocidade e empurrar na outra direção.”

Nas últimas duas décadas, facções do crime organizado se instalaram e prosperaram no Estado, segundo os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil.

(EPA)

“Houve um movimento de expansão do PCC [Primeiro Comando da Capital] pelo Brasil, almejando o controle do cultivo e da distribuição de drogas, e o Nordeste é muito importante, porque é um ponto de escoamento, em especial o litoral do Rio Grande do Norte, que é o ponto mais próximo da Europa, então, é importante estar aqui”, diz Juliana Melo.

O PCC ganhou nos últimos dez anos a concorrência do Sindicato do Crime, que surgiu como uma dissidência da facção paulista e, hoje, é a principal organização criminosa do Estado.

“Eles foram assumindo protagonismo lentamente, mas de forma assertiva, buscando e suprindo as fraquezas dos seus rivais, e foram muito proativos em se espalhar pelo Estado”, afirma Hermes.

“Hoje, eles têm uma presença grande nos maiores municípios, especialmente na região metropolitana de Natal e no oeste do Estado, que é onde ocorreram estes últimos ataques.”

Juliana Melo afirma que a facção divulgou outros salves mais recentemente, que não tiveram a repercussão de agora, e avalia que as autoridades do Rio Grande do Norte talvez não tenham dado a devida atenção à última convocação.

“Podem ter pensado que eles não iam dar conta de fazer o que estavam prometendo, porque estariam enfraquecidos depois que várias lideranças foram presas e por causa da disputa com o PCC”, diz a pesquisadora.

“Mas, agora, eles conseguiram se organizar um pouco melhor. Isso mostra que eles não foram dissolvidos, estão atuantes e são uma força violenta, infelizmente.”

Hermes afirma os ataques recentes indicam que houve uma falha nas medidas de prevenção a ações criminosas.

“Dizer que a culpa é das autoridades do Estado seria forte demais, mas, com certeza, os responsáveis pela segurança, ou seja, a secretaria e seus sistemas de inteligência, falharam”, diz o pesquisador.

Esta não é a primeira vez, afirma Juliana Melo. Ela dá como exemplo o massacre de Alcaçuz, como ficou conhecida a maior rebelião do sistema prisional do Estado, ocorrida em 2017.

“As famílias dos presos mandaram cartas dizendo que ia acontecer e foram ignoradas. O sistema de segurança pública falha o tempo todo. Enquanto não melhorar a situação nas cadeias, não vai conseguir resolver esse problema, que é cíclico.”

As informações são da BBC Brasil.

Sair da versão mobile