Teorias conspiratórias alimentam o bolsonarismo com explicações reducionistas da realidade

A divulgação do relatório paralelo falsamente atribuído ao Tribunal de Contas da União (TCU) expôs outra vez uma prática recorrente do presidente Jair Bolsonaro e de políticos que compõem sua base de apoio: a disseminação de teorias conspiratórias.

No documento, afirma-se, sem provas, que 50% das mortes por Covid-19 não teriam sido causadas pelo vírus.

Desde o início da pandemia, o presidente e parlamentares bolsonaristas ventilam a ideia de que há sobrenotificação de óbitos pelo novo coronavírus, quando especialistas apontam o contrário, a subnotificação de casos e mortes devido à falta de testagem em massa no país.

A adesão a discursos conspiratórios não fica restrita à pandemia.

O GLOBO reuniu exemplos dessas narrativas sem evidências presentes em declarações e postagens em redes sociais do presidente, de integrantes do governo e de parlamentares da base bolsonarista no Congresso.

Os casos vão do uso do 5G pela China para espionar o Brasil à tentativa de criar um corredor ecológico na Amazônia, compreendendo territórios de diversos países, que levaria à perda da soberania nacional na região.

Um dos casos mais emblemáticos são as afirmações de que a urna eletrônica não é confiável. Um projeto para instituir um modelo com a impressão dos votos está em discussão no Congresso.

Apoiadores da proposta, como os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Carla Zambelli (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF), têm citado a possibilidade de fraude ao defender a medida.

Eduardo Bolsonaro e Bia Kicis Foto: Reprodução

No entanto, não há qualquer episódio de fraude em urnas eletrônicas no processo eleitoral brasileiro, desde que o equipamento passou a ser usado na década de 1990, que justifique a desconfiança.

Outro exemplo são as teorias envolvendo a China. Com a pandemia, o presidente e seus aliados passaram a chamar o coronavírus de “vírus chinês”.

No mês passado, sem citar a China diretamente, Bolsonaro insinuou que o país asiático pode ter criado o vírus. A afirmação contraria a Organização Mundial de Saúde (OMS), que aponta que o Sars-CoV-2 provavelmente teve origem animal.

Além da Covid-19, Eduardo e o ex-chanceler Ernesto Araújo também já acusaram, sem evidências, o Partido Comunista Chinês de querer usar o 5G para espionagem.

O filho do presidente fez uma declaração no Twitter ao anunciar a adesão do Brasil à chamada Clean Network (Rede Limpa), articulada pelo governo americano de Donald Trump junto a outros países e cujo objetivo é banir a chinesa Huawei dos serviços de tecnologia. A publicação foi excluída.

A antropóloga Isabela Kalil, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), avalia que a pandemia se tornou uma oportunidade de ampliação de teorias já em circulação e que muitas dessas narrativas se conectam.

Ela destaca que momentos de crise favorecem as explicações fora da realidade. A disseminação de narrativas semelhantes ocorreram, por exemplo, após o assassinato do ex-presidente americano John F. Kennedy, nos anos 1960, e na epidemia de Aids na década de 1980, em que também circularam teorias de que a doença não existia.

— As teorias vão mostrar uma explicação em momentos em que é difícil não ter uma resposta para coisas importantes. Em contextos de situações dramáticas, socialmente, a gente fica mais suscetível a ter teorias conspiratórias.

No caso do Brasil, é mais fácil acreditar do ponto de vista humano que a pandemia não existe que lidar com a realidade. É o caminho mais confortável — analisa Kalil, que vem estudando a aplicação dessas teorias em políticas de Estado no governo Bolsonaro.

Outra teoria usada pelo presidente e aliados é a da perseguição contra fiéis das religiões cristãs, a cristofobia — termo que o presidente usou na abertura da 75ª Assembleia Geral da ONU. O discurso já foi propagado pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

Pelas redes sociais, Damares já compartilhou fotos de igrejas pegando fogo e escreveu: “Depois de ver templos cristãos queimados assim ainda existem dúvidas sobre a cristofobia?”.

De acordo com a ONG Portas Abertas, que monitora o preconceito de cristãos pelo mundo, porém, o Brasil não consta na lista dos 50 países onde há mais perseguição. Tampouco faz parte do rol da organização dos 74 países em observação.

Também no âmbito das relações internacionais, Bolsonaro, ainda na condição de presidente eleito, em novembro de 2018, pediu para que o Brasil não sediasse a Conferência do Clima da ONU em 2019, a COP-25, com base em uma teoria conspiratória.

Ao explicar a decisão, o presidente citou que “estaria em jogo o Triplo A”, que ele acredita ser uma “ameaça à soberania brasileira na Amazônia”.

Na época, Bolsonaro ainda aventou a possibilidade de retirar o Brasil do Acordo de Paris sob a mesma justificativa e indicou no Twitter, um mês depois, um texto que informava que “sob o pretexto de ‘deter as mudanças climáticas’, escondem-se interesses na mais rica região do mundo”.

Idealizado pela fundação colombiana Gaia Amazonas, o Triplo A seria um corredor ecológico ligando Andes-Amazônia-Atlântico, que abrangeria mais de 300 áreas protegidas e mil territórios indígenas.

O projeto nunca foi adiante nem discutido no Acordo de Paris, o que não impediu a teoria conspiratória de prosperar entre apoiadores do presidente.

Impacto das teorias
A partir de um amplo levantamento, pesquisadores da USP e FGV analisaram mais de 4,5 mil discursos oficiais de membros do governo, entre janeiro de 2019 e dezembro de 2020, para compreender o impacto das teorias conspiracionistas sobre a política diplomática brasileira.

Os dados revelam que 20% das menções da política externa de Bolsonaro têm referências a teorias conspiratórias ligadas ao globalismo.

Segundo o cientista político Feliciano de Sá Guimarães, professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP) e um dos idealizadores do estudo, o globalismo é alimentado pela visão de que há um grande complô internacional organizado pelo Partido Comunista Chinês para implementar o marxismo cultural sobre outras nações. Dessa maneira, instituições sólidas como a OMS e a ONU passaram a ser questionadas pelos seguidores desta teoria.

— Conspiradores acreditam em uma simplificação óbvia da realidade, e isso se torna evidente na dificuldade de relacionamento do Brasil com a China, na medida em que é colocada como inimiga pelo governo. A China ascender significa a aniquilação do Brasil para essas pessoas — afirma o pesquisador.

Em discursos oficiais sobre política externa, o estudo aponta Eduardo Bolsonaro como o maior conspirador sobre o globalismo, presente em quase 60% das falas do filho do presidente.

Ele é seguido por Filipe Martins, assessor especial da Presidência, com quase 50%, e por Ernesto Araújo, que citou o tema em cerca de 20% de seus discursos.

Quando analisadas as postagens no Twitter, o estudo identificou que 9 dos 30 perfis que mais disseminam teorias sobre o globalismo são ou foram integrantes do governo federal, sendo responsáveis por aproximadamente 30% dos tuítes publicados no Brasil sobre o tema.

As teorias também têm alto impacto entre o eleitorado de Bolsonaro. Uma análise feita pelo diretor do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop), Oswaldo Amaral, vinculado à Unicamp, identificou correlação entre apoio a Bolsonaro e acreditar em desinformações sobre a pandemia.

O levantamento teve como base uma pesquisa do Instituto Democracia, realizada entre 20 e 27 de abril, com 2.031 entrevistados.

Entre os ouvidos, 51% disseram acreditar, por exemplo, que o coronavírus foi criado pelo governo chinês, mesmo que não exista qualquer evidência nessa direção, mas, entre os que mais apoiam Bolsonaro, o percentual chega a 64%, segundo os dados divulgados no portal Uol.

Uma saída para a disseminação de teorias conspiratórias, na avaliação de Kalil, é as instituições ampliarem sua transparência.

A antropóloga chama atenção para o fato de que, embora exista quem crie deliberadamente teorias conspiratórias para causar caos, um número significativo dos que acreditam nelas agem de boa fé e buscam essas explicações porque têm dúvidas sobre determinados assuntos.

Outro aspecto é que ninguém vira conspiracionista de uma hora para a outra. Há um longo processo de construção dessas realidades paralelas.

Uma das principais consequências das explicações conspiratórias é a criação de inimigos, que podem servir a propósitos políticos.

— Se existe medo e perigo, vamos tentar descobrir quem criou esse perigo. Então, você abre espaço para criar um inimigo. O pânico aflora sentimentos mais fáceis de manipular — diz a antropóloga.

Nesse contexto, Guimarães avalia que os principais integrantes do governo federal utilizam as teorias da conspiração para manter a ideia entre seus apoiadores de “mobilização total e constante contra um inimigo existencial”.

—A simplificação e manipulação da realidade é usada para que se convença o maior número de pessoas sobre como funciona a política e o mundo, motivando uns a convencerem outros sobre esses temas — conclui Guimarães.

As informações são de O Globo.

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