Quatro anos depois, atentado contra Bolsonaro ainda alimenta teorias da conspiração à direita e à esquerda

Parlamentares do PL ao PT continuam a usar hipóteses sem fundamento sobre atentado para mobilização

Em uma publicação numa rede social na última sexta-feira, o deputado federal André Janones (Avante) pôs em dúvida o atentado contra o então candidato Jair Bolsonaro que marcou a eleição presidencial de 2018 e completa quatro anos nesta quarta-feira .

“Vocês nunca se perguntaram o porquê de nenhum bolsonarista, que se dizem tão ‘valentões’, não terem dado nem um tapinha sequer no Adélio, após ele dar a ‘facada’ no Bolsonaro não?”, escreveu o mais novo aliado da campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Tinha uma multidão ali, e Adélio sozinho. Estranho, muito estranho!”

A insinuação de uma farsa por trás do episódio é só mais uma de uma longa lista de teorias da conspiração que envolvem o golpe de faca desferido por Adélio Bispo contra Bolsonaro num ato de campanha em Juiz de Fora (MG).

Quatro anos depois, parlamentares, dirigentes partidários e influenciadores à esquerda e à direita ainda distorcem detalhes ou inventam fatos sobre o ataque para atribuí-lo a algum tipo de complô encoberto, ainda que o crime tenha sido alvo de dois inquéritos da Polícia Federal. Não raro, a própria vítima e seus filhos levantam dúvidas sobre o episódio.

Do lado bolsonarista, as últimas figuras a tocarem no tema foram o senador Flávio Bolsonaro e o deputado federal Hélio Lopes, ambos do PL do Rio. “A pergunta segue a mesma: Quem mandou matar Bolsonaro? Ou a pergunta seria por qual razão querem soltar Adélio?”, escreveu Flávio no dia 26 de julho, pouco antes de a Justiça fazer uma perícia psiquiátrica que determinou que o agressor, diagnosticado com transtornos mentais, deveria continuar preso.

Lopes foi na mesma linha dois dias depois: “A pergunta segue a mesma: quem mandou matar Bolsonaro?”. Antes, várias integrantes das fileiras bolsonaristas, incluindo os deputados Bia Kicis, Carla Zambelli, Carlos Jordy e Eduardo Bolsonaro, todos do PL, já haviam repetido a mesma pergunta, insinuando que Adélio obedeceu a um mandante oculto, o que não foi identificado pela investigação policial.

Na oposição, a lista dos que levantam suspeitas sobre a facada também é vasta. Os deputados federais petistas Bohn Gass, Paulo Pimenta, Rogério Correia e Zeca Dirceu, assim como o tucano Alexandre Frota, já disseram que o atentado não passou de uma “fakeada”, uma armação para beneficiar politicamente o então candidato, que fez campanha do hospital sem economizar no tom emocional e não participou de debates até o fim da campanha

Em setembro de 2021, quando houve o lançamento do documentário “Bolsonaro e Adélio — Uma fakeada no coração do Brasil”, Frota chegou a apresentar um pedido de CPI sobre o caso, que não avançou. O filme acabou removido das principais plataformas digitais de conteúdo.

Ao excluí-lo no mês passado, o YouTube alegou que o material viola sua política contra “discurso de ódio”, que bane qualquer conteúdo “que negue, banalize ou minimize eventos históricos violentos, incluindo o esfaqueamento de Jair Bolsonaro”.

De acordo com a consultoria Arquimedes, datas como os aniversários do episódio ou o atentado contra Cristina Kirchner aumentam a repercussão sobre o tema. Em setembro de 2020, quando o atentado completou dois anos, os apoiadores do presidente promoveram uma ação coordenada, o que também é previsível para esta terça-feira.

— O pico de menções à facada e aos outros termos está associado a momentos bastante óbvios — disse ao GLOBO Pedro Bruzzi, da Arquimedes, pontuando também que acontecimentos relacionados às investigações do caso também fazem o assunto ganhar popularidade.

Investigações da PF

Em duas extensas investigações, a Polícia Federal (PF) concluiu que não houve mandantes para o ataque a faca e que Adélio Bispo agiu sozinho, por iniciativa própria e sem a ajuda de terceiros, tendo sido responsável tanto pelo planejamento da ação criminosa quanto por sua execução.

O inquérito mais recente tem 1.908 páginas. A polícia reabriu o caso em novembro para examinar se os advogados de Adélio Bispo foram contratados por um terceiro ou se resolveram assumir o caso por conta própria, o que é considerado a última lacuna do caso do ponto de vista policial.

É ainda possível esclarecer detalhes relacionados ao caso na esfera pública — sobre a suposta proteção do agressor alegada por Janones, por exemplo, o livro recém-lançado “O Ovo da Serpente”, da jornalista Consuelo Dieguez, traz a informação de que Adélio na verdade foi espancado em uma sala por policiais federais pouco após dar a facada, em uma sessão de tortura em busca de um possível mandante, o que não chegou a ser investigado.

Responder a cada um destes detalhes, no entanto, ignora um elemento central das teorias da conspiração: é impossível desmenti-las totalmente.

— As teorias da conspiração são por natureza irrefutáveis. Inclusive quando fazem previsões erradas, como no caso da teoria americana QAnon [segundo a qual políticos do Partido Democrata integrariam uma rede global de pedofilia], quem acredita nelas sempre tem uma justificativa — afirmou ao GLOBO Alejandro Romero Reche, sociólogo da Universidade de Granada,na Espanha. — Quando não há nenhuma prova, isto é uma prova de que os conspiradores são tão bons que esconderam tudo.

Segundo Isabela Kalil, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, as teorias sobre o atentado variam desde as mais intrincadas, de que na verdade houve uma faca falsa ou então o ataque estava ligada a episódios como a morte de Eduardo Campos, até outras menos mirabolantes, como dúvidas sobre se Adélio agiu sozinho. As dúvidas se relacionam à própria natureza do caso:

— É uma história intrincada, cheia de complicações e detalhes complexos. Além disso, esses inquéritos judiciais necessariamente correm em sigilo. Com a falta de transparência, as versões vão surgindo — disse Kalil.

Romero Roche define uma teoria da conspiração como “uma tentativa de explicar a realidade social assinalando que ela é resultado de um plano deliberado realizado de forma oculta”. Além de serem irrefutáveis, estas teorias têm três características, disse ele, citando o cientista político americano Michael Barkun:

— O primeiro princípio é que tudo está conectado. Coisas aparentemente soltas na verdade têm conexões que escapam à nossa visão. O segundo é que nada ocorre por acaso, tudo faz parte de um plano deliberado — disse Romero Reche. — A terceira regra é que nada é o que parece. Numa teoria da conspiração, se quisermos conhecer a verdade, precisamos olhar por baixo das aparências.

Filmes dos dois lados

Além do filme “Uma fakeada no coração do Brasil”, críticos do presidente também fizeram outro, com produção mais amadora, lançado ainda em dezembro de 2018. Ele atualmente também se encontra banido das principais plataformas. Do outro lado, a produtora de extrema direita Brasil Paralelo atualmente produz um filme com uma versão conservadora sobre o episódio.

Segundo Letícia Cesarino, antropóloga da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que monitora grupos de bolsonaristas em mídias sociais, a facada é um tema sempre presente nestas redes. A pesquisadora observa que “há públicos conspiratórios na esquerda”, mas que, no entanto, “o conspiracionismo é um elemento muito central das redes bolsonaristas”. Para além de seus efeitos conspiratórios, o caso serve nestas redes para desviar eventuais críticas:

— Os apoiadores de Bolsonaro se veem como representantes da ordem, da moderação, e da Constituição. O caso da facada funciona quase como um álibi. Toda vez que são acusados de serem violentos, os militantes bolsonaristas têm esse fato para dizer que, na verdade, a violência vem da esquerda.

O uso político do caso também alimenta as especulações. Adélio havia sido filiado ao PSOL no passado, o que incentivou apoiadores de Bolsonaro a fazerem uma associação dele com partidos de esquerda mesmo sem qualquer evidência de envolvimento das siglas. Segundo o livro de Dieguez, quando ainda estava no hospital em Juiz de Fora, o próprio Bolsonaro disse a aliados que “é só não fazer mais nada que a eleição está ganha.”

Isabela Kalil observa que há certo consenso de que Bolsonaro se beneficiou politicamente do atentado, diminuindo sua rejeição a partir dali. Ela acrescenta, no entanto, que não foi só por isso que venceu:

— A política não se explica a partir de um só evento. Ela não é como um filme, no qual um episódio muda completamente o destino dos personagens. Pensar assim é um esvaziamento da política.

As informações são do Jornal O GLOBO.

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