Por que CPI contra padre Júlio pode ser revés para direita

Com CPI das ONGs, políticos de direita radicalizam seu discurso mirando eleições municipais, avaliam especialistas

Foto: Reprodução/ Instagram: padrejulio.lancellotti / Estadão

O vereador paulistano Rubinho Nunes (União Brasil) chegou a reunir o apoio de 30 parlamentares para a instalação da chamada CPI das ONGs na Câmara Municipal de São Paulo. A comissão pretende investigar o trabalho social dessas instituições na Cracolândia e tem como um dos alvos o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua e que atua junto à população vulnerável.

Os vereadores que inicialmente assinaram o documento (após repercussão negativa, alguns retiraram o apoio) são de partidos de direita como PSDB, PL, Republicanos, MDB e União Brasil. Para especialistas ouvidos pela DW, o pedido de abertura da CPI representa uma radicalização do discurso desses políticos, visando as eleições municipais em outubro. Contudo, eles afirmam que a estratégia pode ser um revés para a direita e não surtir os efeitos eleitorais previstos pelo grupo.

Cracolândia politizada

Tathiana Chicarino, cientista política da Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo, pesquisa campanhas eleitorais e monitora a atuação da direita, sobretudo nas redes sociais. Segundo ela, o problema social crônico da Cracolândia foi politizado.

“É um tema bastante controverso em que ficam gravitando soluções imediatistas e que entra de forma simplista nas campanhas”, pondera. Ela diz que a estratégia de convocar uma CPI para debater o tema é arriscada e polariza as soluções apresentadas por atores da direita e da esquerda.

A área chamada de Cracolândia, no centro de São Paulo, concentra a população de rua há mais de 30 anos em uma condição de vulnerabilidade. A estimativa da Secretaria Municipal de Segurança Urbana é que haja cerca de 520 pessoas em concentrações urbanas na região. A prefeitura informou que faz abordagens diárias na área à população de rua.

A Pastoral do Povo na Rua, da Arquidiocese de São Paulo e coordenada pelo padre Júlio Lancellotti, enquanto instituição religiosa, atua há 40 anos em ações para levar alimentos, abrigo e direitos à população de rua no local. A pastoral não mantém convênios com a prefeitura, e os recursos para o trabalho de assistência à população vulnerável são oriundos de campanhas de arrecadação e doações.

Acusações

Contudo, ainda que o documento que contém o pedido de abertura da CPI não mencione o padre Júlio, o vereador Rubinho Nunes tem utilizado as redes sociais para hostilizar o pároco de 75 anos. “Todas as ONGs orbitam ao redor dele, por mais que ele não coloque o CPF, o que gera mais dúvida de até onde ele está envolvido. Estou na minha prerrogativa de fiscalizar.”

O padre reagiu às acusações e disse que não pertence a nenhuma Organização da Sociedade Civil (OSC) ou ONG. “A atividade da Pastoral de Rua é uma ação pastoral da Arquidiocese de São Paulo, que por sua vez não se encontra vinculada, de nenhuma forma, às atividades que constituem o objetivo do requerimento aprovado para a criação da CPI em questão”, escreveu.

Por meio de nota, a Arquidiocese de São Paulo se disse perplexa com a possível abertura da CPI. “Padre Júlio não é parlamentar. Ele é o Vigário Episcopal da Arquidiocese de São Paulo ‘para o Povo da Rua’ e exerce o importante trabalho de coordenação, articulação e animação dos vários serviços pastorais voltados ao atendimento, acolhida e cuidado das pessoas em situação de rua na cidade.”

Diferente visão de mundo

Para o cientista político da Fundação Getulio Vargas (FGV) Marco Antônio Teixeira, o trabalho desempenhado por Lancellotti vai de encontro à visão de mundo da direita mais autoritária.

“Estão voltados para uma perspectiva repressiva, e a Cracolândia é um espaço de disputa de narrativas políticas. É uma visão de mundo mais higienista e trata a população como problema de saúde física e mental. No embate eleitoral, tirá-los da rua e escondê-los dá votos”, avalia.

Teixeira diz que, ao mirar o padre, a CPI dá continuidade a uma série de ataques ao religioso, que já foi alvo de outras acusações por parte de ex-integrantes do MBL que se tornaram políticos. “Isso está no bojo de discussões de intensificação das eleições. Não mobilizam toda a direita, mas uma parte mais radicalizada.”

Mobilização nas redes

A instalação da CPI tem o potencial de mobilizar os eleitores por meio das redes sociais. O professor de administração pública da Unicamp, Rodrigo Sousa, explica que a exposição na comissão, que é televisionada, alimenta a produção de conteúdos, como edições de vídeos curtos e, além de pautar a discussão sobre a Cracolândia, também coloca os próprios parlamentares em evidência e pode contribuir para a reeleição deles.

“É uma técnica muito comum da direita, que chegou ao Brasil com o bolsonarismo depois da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. O método é muito favorecido pela engenharia das redes sociais que atraem usuários pela radicalidade do discurso e não promovem o diálogo. A estratégia é o ataque ao inimigo, por meio de discursos de ódio”, diz.

O vereador Rubinho Nunes confirmou que é pré-candidato, mas negou que o pedido da CPI tenha caráter eleitoral. A cientista política Tathiana Chicarino ressalta que Nunes foi um dos fundadores do MBL, mas que o grupo, que foi relevante para pautar debates entre 2014 e 2019, tem perdido força, principalmente após a volta do PT à Presidência da República.

“É um vereador de primeiro mandato, ao tentar se reeleger, o que vai mostrar? É muito difícil ter capital político na campanha eleitoral para o legislativo. O capital deles era o midiático digital, mas hoje não estão mais no centro do debate. Essa é uma estratégia para se mostrar e conseguir votos”, avalia.

Revés

Rodrigo Sousa, da Unicamp, acrescentou que esse engajamento nas redes sociais, que também envolve memes e fake news, foi eficaz nas eleições passadas de ascensão de políticos de direita ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). No entanto, ele ressalta que a estratégia está em declínio. “Isso pode se reverter contra eles, pode ser negativo. Depois dessas experiências, o eleitor está mais crítico.”

Além disso, Tathiana Chicarino diz que, nos grupos de mensagem bolsonaristas, a proposição da CPI das ONGs não teve repercussão.

“Uma das razões é a própria figura do padre Júlio Lancellotti. Ainda que grupos extremistas sejam contra ele, estamos falando de um religioso. O tema não foi capitalizado entre essa extrema direita digital mais bolsonarista. O que está na pauta é o 8 de Janeiro e o ministro Alexandre de Moraes.”

Repercussão política

O direcionamento de críticas ao padre Júlio Lancellotti também suscitou reações entre autoridades do governo federal, como o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e políticos.

Além disso, a adesão à CPI entre os vereadores paulistanos está em declínio. Alguns parlamentares que assinaram o requerimento de abertura dos trabalhos já afirmaram que vão recuar do apoio.

“Eu li o projeto que me foi apresentado, mas mudou a finalidade. Se tornou uma CPI voltada para o padre Júlio Lancellotti. Se tivesse chegado no primeiro momento assim, jamais teria meu apoiamento”, disse o vereador Thammy Miranda (PL).

O presidente da Câmara, vereador Milton Leite (União Brasil), diz que a instalação da CPI deve ser discutida no Colégio de Líderes no retorno do recesso parlamentar em fevereiro. “Vamos obstruir em todos os sentidos se isso de fato for levado à frente nas comissões”, completou o vereador Senival Moura (PT).

Com informações da DW Brasil.

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