O papel das esferas governamentais na crise que deixou pessoas morrerem asfixiadas por Covid no Amazonas

o papel dos governos municipal, estadual e federal na crise que deixou pessoas morrerem asfixiadas por Covid no Amazonas

Problemas vão desde fechamento precoce do hospital de campanha à reabertura antecipada da economia (Foto: Divulgação - AFP)

A superlotação da rede de saúde de Manaus (AM), que passou a enfrentar falta de oxigênio para atendimento aos infectados pela Covid-19, vem fazendo novas vítimas — mortos por sufocamento ou por falta de leitos. A situação colocou em xeque as decisões e a condução da crise no estado desde o primeiro caso confirmado da doença, em março de 2020.

O estado registrou quase 6 mil mortos e mais de 223 mil casos do novo coronavírus desde o início da pandemia. Nos primeiros nove dias do ano, o número de internações com sintomas da doença já superava todo o mês de dezembro e a média de mortes cresceu 187% nos últimos 7 dias em relação à média registrada duas semanas atrás.

O epidemiologista da Fiocruz Manaus Jesem Orellana avalia que as autoridades perderam a oportunidade de fazer intervenções para frear uma segunda onda da doença em Manaus (leia abaixo).

Estrutura emergencial
O hospital de campanha só foi inaugurado quando Manaus já tinha mais de mil casos confirmados de Covid-19. A estrutura de retaguarda à rede hospitalar, já na época em colapso, foi inaugurada com apenas 18 leitos em abril de 2020.

A unidade, que chegou a 180 leitos, encerrou as atividades apenas dois meses após a inauguração. Com o encerramento do funcionamento do hospital, os equipamentos foram redistribuídos nas unidades da rede estadual de saúde.

“Podemos dizer que o hospital de campanha cumpriu sua missão e que o prefeito Arthur conseguiu dar um grande apoio ao Estado. A partir de amanhã vamos rever todos os procedimentos dentro do hospital”, disse em junho o secretário municipal de Saúde, Marcelo Magaldi.

O número de casos de Covid era superior a 23 mil na ocasião. A taxa de ocupação da rede hospitalar do município era de 66%.

Agora, às pressas, uma enfermaria de campanha está sendo instalada na área do Hospital Delphina Aziz, unidade de referência para tratamento da Covid-19 no Amazonas. Serão, inicialmente, 60 leitos clínicos.

O hospital de campanha de 2020 ainda é alvo de uma ação do MP que apura supostas irregularidades e sobrepreço na locação do espaço.

Oxigênio insuficiente

Após três dias de visita a Manaus e na iminência do colapso hospitalar, o ministro Pazuello culpou a distância e a consequente dificuldade logística para justificar a falha no atendimento da demanda por oxigênio. Cabe à União assegurar o fornecimento regular de oxigênio para os hospitais.

Segundo o ministro, a capacidade de entrega de oxigênio pelo governo federal em aviões, mais o que o fornecedor consegue oferecer no estado, não atinge a necessidade da rede hospitalar.

“Nós estamos em Manaus, não precisa contar a ninguém onde é. Quanto tempo leva a balsa vinda de Belém? E assim o estado começou a fazer sua logística dentro do que podia, mas não tem como vencer uma demanda desse tamanho”, disse.

De acordo com o Procurador da República do Amazonas, Igor da Silva Spindola, em abril e maio de 2020, durante o primeiro pico da doença no estado, a demanda por oxigênio era de 28 mil m³ por dia. Agora a necessidade está em mais de 70 mil m³ diários.

O governador Wilson Lima, por sua vez, só enviou há 4 dias um pedido a governadores do país sobre a “iminência de sofrer desabastecimento de oxigênio”.

“Por conta do uso intensivo de oxigênio de uso hospitalar, principalmente no tratamento dos problemas respiratórios relacionados ao Covid-19, e diante desse quadro já preocupante, o Amazonas está na iminência de sofrer desabastecimento desse produto”, diz o documento datado do último dia 10. No e-mail endereçado ao governo do Rio de Janeiro, por exemplo, todos os destinatários estavam errados.

Agora, a intenção do governo federal é instalar dez miniusinas de oxigênio, com capacidade para gerar 5 mil metros cúbicos por dia – o que não vai solucionar totalmente o problema. Além disso, juntos, o cargueiro da FAB e um Boeing contratado só conseguem levar 9 mil metros cúbicos de oxigênio por viagem a Manaus.

Atuação do Planalto
Apesar da tragédia em Manaus, Bolsonaro deu entrevista nesta sexta-feira (15) e considerou que o governo federal agiu para evitar o caos. Já Mourão minimizou o papel que compete ao Planalto na crise.

“Terrível o problema em Manaus. Agora, nós fizemos a nossa parte […] O ministro da Saúde esteve lá na segunda-feira e providenciou oxigênio”, disse. Bolsonaro.

Em um post na rede social, Bolsonaro afirma que ofereceu transporte de oxigênio e de pacientes ao estado, além de recursos financeiros da ordem de quase R$ 9 milhões.

O presidente também vem colocando em dúvida, desde o início da pandemia, a eficácia das vacinas, além de repetir que, por ter sido contaminado, não precisa se vacinar. O discurso do presidente vai na contramão da ciência e de outros líderes mundiais.

“Alguns falam que eu tô dando um péssimo exemplo. Ou é imbecil ou é idiota que tá dizendo que eu dou péssimo exemplo, eu já tive o vírus. Eu já tenho anticorpos, disse recentemente.

Durante transmissão ao vivo ao lado do presidente nesta quinta, Pazuello relacionou os motivos que, segundo ele, levaram Manaus ao atual estágio de infecções e mortes provocadas pela Covid-19: questões climáticas, à falta de infraestrutura hospitalar e recursos humanos, e à ausência de “tratamento precoce” da doença provocada pelo coronavírus.

Na transmissão, Bolsonaro voltou a defender para fins preventivos o uso de hidroxicloroquina, ivermectina, nitazoxanida, zinco e vitamina D, substâncias para as quais não há comprovação científica de eficácia contra a Covid, mas, no entendimento do presidente, há comprovação “observacional”.

Pazuello também acrescentou que Manaus “não teve a efetiva ação no tratamento precoce com o diagnóstico clínico, no atendimento básico”. Isso, segundo ele, “impactou muito a gravidade da doença”.

Pouco isolamento e flexibilização precoce
Pouco mais de 10 dias após a confirmação do primeiro caso no estado, em março do ano passado, o governo do Amazonas decretou o fechamento do comércio não essencial. No mesmo dia, manifestantes fizeram uma carreata em Manaus contra a medida.

Nos dias seguintes, o descumprimento do decreto continuou, com registros de aglomerações e comércios abertos. Na capital, operações policiais chegaram a ser montadas para fiscalização, mas não conseguiram conter o desrespeito da população.

Em abril, mesmo com 5 mil infectados e casos em crescimento, o governo do estado descartou a realização de um “lockdown” e anunciou medidas para a retomada do comércio em Manaus, incluindo aulas presenciais em escolas e eventos culturais. Em setembro, o prefeito da capital à época, Arthur Virgílio, voltou a propor ao estado o fechamento total da economia, mas medida não vigorou.

“Propus ao governador que façamos juntos. Pode parecer desagradável, mas estou preocupado em salvar vidas. Sou a favor do lockdown por entender que isso pode, realmente, acabar de vez com essa ameaça de segunda onda, que seria catastrófica”, disse na época. Especialistas também criticavam o relaxamento e alertaram sobre o risco de um novo colapso.

“Levando em consideração que temos que proteger a vida das pessoas, por outro lado temos que manter o mínimo de atividades econômicas em funcionamento”, disse Wilson Lima na ocasião.

Com o novo avanço da doença pelo estado no final de dezembro, o governo voltou a proibir a abertura de comércios não essenciais por 15 dias e a prefeitura de Manaus decretou estado de emergência no município.

Repetindo os atos da primeira onda de Covid, uma multidão foi às ruas em Manaus para protestar contra o novo decreto que previa o fechamento da economia por 15 dias.

Para o governador do Amazonas, as manifestações geraram mais danos do que o funcionamento pleno do comércio. Ele cedeu à pressão popular e recuou da decisão, liberando a funcionamento de lojas, shoppings, bares e restaurantes.

Análise
Para o epidemiologista da Fiocruz em Manaus Jessem Orellana, os desdobramentos da epidemia em Manaus são um retrato da inércia de governantes, sobretudo nas esferas municipal e estadual.

“Na entrevista coletiva de ontem [14/1], em que estava o secretário estadual de saúde, ficou claro com a exposição de tabelas e dados que eles estavam fazendo o monitoramento da Covid-19. Ali o governo apresentou prova contra si mesmo, ao mostrar que sabia da dimensão da crise lá atrás e perderam a oportunidade de fazer as intervenções em momento apropriado”, disse.

Segundo o especialista, o ponto chave para o caos no estado foi a proposta de lockown descartada em setembro pelo governo do estado. “Percebendo esse ambiente de negação no Amazonas, a Fiocruz emitiu alertas, tentando mostrar o risco iminente. Isso mostra o quanto uma narrativa de que as autoridades foram surpreendidas e que nada poderia ser feito é infértil. O que está acontecendo é reflexo das decisões inadequadas. Por que só Manaus enfrenta essa cenário de caos agora? Basta olhar o que foi feito e como foi conduzida a crise”, disse Orellana.

Sobre o hospital de campanha, o epidemiologista considera que a abertura foi tardia e o fechamento precoce. “Esse conceito de hospital de campanha é muito distorcido aqui no Brasil. O hospital de campanha de Manaus nunca deveria ter sido fechado. O fechamento foi como combustível para a segunda onda. Se passou a ter, juntos, no mesmo ambiente, os pacientes de grupo de risco não infectado atendidos com os doentes com Covid-19. Era a condição favorável para disparar a pandemia”, afirmou.

Sobre o recuo do governador em dezembro, com a revogação do decreto de fechamento do comércio, Orellana considera que foi uma ação articulada previamente. “Nada se fez para frear de fato a movimentação em torno do Natal e, dia 26, logo após a data, o governador faz um decreto quando o ‘incêndio já tomava conta’, ou seja, ainda que fosse aplicado como previsto, seria inócuo para frear a nova onda de casos”, concluiu.

As informações são do G1.

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