Mesmo trabalhando o dobro, negros têm menos chances de virarem CEOs no Brasil

Racismo estrutural no mercado de trabalho faz com que a chance de uma pessoa branca ocupar cargos de liderança seja 58 vezes maior

Mesmo trabalhando o dobro, negros têm menos chances de virarem CEOs no Brasil

Em pesquisa do LinkedIn, 93% dos negros afirmaram que há barreiras para alcançarem posições de liderança no mercado de trabalho Foto: iStock

Por mais que as políticas de diversidade e inclusão venham ocupando o foco das conversas no ambiente corporativo nos últimos anos, dados mostram que, na prática, a ascensão a cargos de liderança para pessoas negras caminha a ritmo lento. O alto escalão das empresas se mantém praticamente intocável – e ainda predominantemente, branco.

O mercado de trabalho hoje, data em que se celebra o Dia da Consciência Negra, exige que um profissional negro tenha de trabalhar o dobro para chegar ao topo, segundo uma pesquisa global de 2022 da consultoria de gestão de pessoas Korn Ferry. Apenas 0,4% atingem a chamada alta liderança, ou seja cargos de CEO. Negros também ganham menos que brancos, independentemente da escolaridade.

Divulgado também no ano passado na revista “Social Science Research Network”, do grupo Elsevier, o estudo “Governança Corporativa e Diversidade Racial no Brasil: um Retrato das Companhias Abertas” concluiu que lideranças corporativas de companhias abertas se mantêm desiguais para profissionais pretos e pardos.

O estudo foi conduzido por Carlos Portugal Gouvêa, professor de Direito Comercial da Universidade de São Paulo (USP), e integra sua tese de livre docência “A Estrutura da Governança Corporativa” em que buscou compreender aspectos da sociedade que impactam as lideranças corporativas.

Gouvêa reuniu dados detalhados de 15% da amostra de 442 companhias abertas brasileiras, utilizando formulários, balanços do perfil profissional nos sites das empresas e informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), feita entre 2012 e 2019 pelo IBGE. O objetivo foi analisar a diversidade racial existente nos cargos de membro do conselho de administração, de diretor presidente e de diretor financeiro.

Os dados demonstraram que nenhuma pessoa preta ocupava cargo nos conselhos de administração pesquisados no período analisado e que apenas 1,05% deles eram ocupados por pessoas pardas. Isso mostra que a chance de uma pessoa branca ocupar cargos de liderança é 58 vezes maior em comparação a uma pessoa não branca. Nos cargos de diretor presidente e diretor financeiro não foram identificadas pessoas pretas ou pardas.

Múltiplas barreiras

Um estudo recente do LinkedIn contribui com mais números. De 1.117 profissionais negros ocupantes de cargos formais entrevistados pela plataforma entre 30 de agosto e 13 de setembro deste ano, 93% afirmaram que há barreiras para alcançarem posições de liderança no mercado de trabalho. Para 42% dos respondentes, o ambiente de trabalho não adota meios para valorizar a diversidade ou a inclusão, enquanto que 44% observaram que os locais de trabalho resistem às mudanças. Concluindo, 49% disseram que o racismo estrutural dificulta o caminho aos postos mais avançados na hierarquia das empresas.

A ausência de pessoas negras em determinados postos de trabalho, sobretudo os de liderança, é resultado de uma série de condicionantes históricas que foram pensadas para que os negros estivessem na base e os brancos, no topo.

“A falta de oportunidades é uma das grandes adversidades que pessoas negras enfrentam. E não é por falta de desenvolvimento, de formação, expertise ou letramento. Há muitos profissionais negros de alto potencial, mas ele não é visto, é colocado à margem, porque a nossa sociedade está condicionada a olhar para o perfil branco como único detentor de conhecimento”, pontua Rachel Maia, da RM Consulting, presidente do conselho administrativo do Pacto Global da ONU no Brasil e conselheira da Vale e da CVC Corp.

Uma das maiores executivas do país, Rachel fez história ao se tornar a primeira mulher negra a ocupar o cargo de CEO no Brasil – e de marcas de luxo como Lacoste e Pandora. Hoje, compartilha seu conhecimento em eventos e palestras e aponta melhorias sem perder de lado a visão realista da questão racial.

“Se o negro nunca vê ninguém de sua cor na liderança, como seguir acreditando que pode um dia ocupar aquele espaço?”, indaga Kwami Correia
Foto: Arquivo pessoal

“Há poucos passos estamos mudando este cenário de disparidade racial no mercado de trabalho com programas de mentoria e capacitação. As empresas também estão configurando a rota e estão olhando, ainda que minimamente, para os talentos negros com os programas de ações afirmativas e diversidade. Mas, veja bem, todas essas políticas precisam ser contínuas e efetivas, a longo prazo. Vejo que o mais difícil do que chegar em um cargo de liderança, é se manter lá”, ressalta.

Ela lembra que atualmente, no Brasil, apenas 4% dos CEOs são negros, porcentagem que não dialoga com a grandiosidade numérica da população negra. “Isso se dá por vários motivos, dentre eles o racismo que impacta em todas as áreas vivenciada por uma pessoa negra. Além da falta de oportunidades, uma trajetória que demanda muito mais esforço e garra para acessar o básico. Por exemplo, pessoas negras têm menos acesso a redes de contatos ou quase não têm capital social. São pontos que são levados em consideração no momento de escolha entre dois candidatos, um branco e um negro, que desempenham a mesma função.”

Ciclo de indicações

Luanny Faustino, Head de Estratégia e Negócios na consultoria Tree Diversidade, reforça a percepção de Rachel: “Se você abre um site de busca de vagas, dificilmente você vai ver ali uma empresa procurando por um CEO, por um CFO, por um diretor em alta liderança. São vagas fechadas por indicação e nós temos a tendência a indicar pessoas do nosso ciclo com base nos nossos vieses de afinidade. Hoje, como 90% dos CEOs no Brasil são homens brancos, automaticamente as indicações para cargos de alta liderança vão ser alguém com quem esses homens estão jogando tênis, estão tomando vinho ou já trabalharam. Consequentemente você fecha o ciclo e a possibilidade de pessoas negras serem indicadas”, diz.

Luanny Faustino: “90% dos CEOs no Brasil são homens brancos e indicam outros homens brancos para postos de liderança”
Foto: Arquivo pessoal

“Códigos” e condições desiguais dificultam o acesso da população preta à evolução profissional, conforme Fred Maciel (Negro F), professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC). “Racismo estrutural é isso: não temos oportunidade de estudar, nos qualificar e aplicar nosso conhecimento. Por isso poucos chegam ou têm oportunidade em cargos de destaque. ‘Não basta ser livre, é preciso dominar os códigos de liberdade’, disse o professor Marcos Vinicius Fonseca no seu livro ‘População Negra e Educação: o Perfil Racial das Escolas Mineiras no Século XIX’. Precisamos de acesso aos códigos que eles criaram. Precisamos de espaços, lugares e empresas que gerem oportunidades, acolhimentos e remuneração digna como meta” pontua.

A educação é uma das principais barreiras para chegar ao topo. Conforme um levantamento feito pela Liga de Ciência Preta Brasileira em 2020, os negros são minoria nos cursos de pós-graduação das universidades públicas. Segundo a pesquisa, dentre os alunos de pós-graduação, 82,7% são brancos e apenas 2,7% são pretos. Os pardos somam 12,7%, enquanto 2% são amarelos e menos de 0,5% é indígena.

Segundo um estudo recente realizado pelo British Council, uma organização internacional dedicada à educação e às relações culturais, apenas 5% dos brasileiros têm conhecimento do idioma inglês, e desses, apenas 1% possui fluência no idioma, competência primordial para galgar degraus na carreira. Nesse 1%, é fácil apostar numa minoria negra.

Incentivo na representatividade

Para acelerar a formação de executivos negros e, ao mesmo tempo, consolidar um networking que dê visibilidade a esses profissionais, Kwami Alfama Correia criou o Instituto Patuá. Ex-CEO da Tereos Amido & Adoçantes Brasil e da Zeg Biogás, ele atua como conselheiro de empresas e avisa que está em transição de carreira.

Nascido em Cabo Verde, na costa africana, ele cresceu rodeado por referências de líderes negros – um contexto bem diferente do que encontrou no Brasil, onde fez sua formação acadêmica. “A representatividade é muito importante. Se um profissional negro nunca vê ninguém de sua cor na liderança, como seguir acreditando que pode um dia ocupar aquele espaço?”, questiona.

O Instituto Pactuá abre anualmente 45 vagas para jovens pretos ou pardos em cargos médios participarem de mentorias com execuivos negros das mais diversas áreas. A participação é gratuita – o único compromisso é que, ao término da mentoria, os participantes assumam o papel de mentores e passem adiante aquilo que aprenderam. “É uma espécie de contrato moral”, fala Kwami.

Para ele a capacitação – independentemenente do racismo estrutural que ainda dá as cartas no mercado e da ausência de políticas públicas, apesar da lei de cotas, que possam vislumbrar um futuro melhor para a população negra – ainda é a melhor estratégia.

Com informações do Terra.

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