Estudo com casais mapeia genes que podem explicar resistência à Covid-19

Em estudo divulgado na plataforma medRxiv, pesquisadores brasileiros deram os primeiros passos no sentido de entender por que algumas pessoas são naturalmente resistentes à infecção pelo novo coronavírus.

O trabalho se baseou na análise do material genético de 86 casais em que apenas um dos cônjuges foi infectado pelo Sars-CoV-2, embora ambos tenham sido expostos. Os resultados – que ainda estão em processo de revisão por pares – sugerem que determinadas variantes genéticas encontradas com maior frequência nos parceiros resistentes estariam associadas à ativação mais eficiente de células de defesa conhecidas como exterminadoras naturais ou NK (do inglês natural killers). Esse tipo de leucócito faz parte da resposta imune inata, a primeira barreira imunológica contra vírus e outros patógenos. Quando as NKs são acionadas corretamente, conseguem reconhecer e destruir células infectadas, impedindo que a doença se instale no organismo.

“Nossa hipótese é que as variantes genômicas mais frequentes nos parceiros suscetíveis levariam à produção de moléculas que inibem a ativação das células NK. Mas isso é algo que ainda precisa ser validado por meio de estudos funcionais”, explica Mayana Zatz, professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (CEGH-CEL), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

Após anunciar na imprensa que buscavam voluntários para o projeto, em meados de 2020, os cientistas do IB-USP foram contatados por aproximadamente mil casais com histórias parecidas e intrigantes. Um homem com mais de 70 anos, por exemplo, precisou ser hospitalizado para tratar complicações da Covid-19 enquanto sua esposa, na mesma faixa etária, e sua sogra, que tem 98 anos e mora na mesma casa, não apresentaram qualquer sinal de infecção. Outro caso curioso é o de um homem de 100 anos que testou negativo para o vírus apesar de ter mantido o contato rotineiro com sua esposa, de 90 anos, que foi contaminada.

“Inicialmente achávamos que casos como esses eram raros e nos surpreendemos com a variedade de relatos. Selecionamos 100 casais com características comparáveis – entre elas idade e ancestralidade genética – e coletamos amostras de sangue para uma análise mais detalhada”, conta Zatz à Agência Fapesp.

A identificação dos casais e a coleta de material dos voluntários foram conduzidas pelo bolsista de pós-doutorado da Fapesp Mateus Vidigal. “O primeiro passo foi fazer um teste sorológico para excluir da amostra eventuais casos assintomáticos [pessoas que, na verdade, haviam sido infectadas, mas não apresentaram sintomas]. Após essa triagem, restaram 86 casais de fato sorodiscordantes, ou seja, em que apenas um cônjuge carregava no sangue anticorpos contra o novo coronavírus”, relata Vidigal.

Enquanto no grupo dos suscetíveis havia uma maioria de homens (53 contra 33), as mulheres predominavam entre os resistentes (57 contra 29). Vidigal destaca que a pesquisa foi conduzida antes do surgimento das novas cepas do Sars-CoV-2, consideradas mais transmissíveis. “Não temos certeza de que os achados seriam os mesmos em pessoas expostas à P.1., por exemplo”, pondera.

Thaís Oliveira de Andrade com o marido, Eric Soares de Araújo, ambos de 44 anos e voluntários da pesquisa. Ele contraiu Covid-19 e precisou ser hospitalizado; ela até agora tem se mostrado resistente ao Sars-CoV-2 (Foto: Acervo pessoal)

Herança

De acordo com Zatz, o fato de a resistência ao Sars-CoV-2 ser uma característica relativamente comum na população – diferentemente do HIV, causador da aids, por exemplo – fala a favor de uma herança genética complexa, na qual muitos genes estão envolvidos. “Isso significa que, para achar algo significativo ao olhar o genoma como um todo, seria preciso ter uma amostra gigantesca, com mais de 20 mil voluntários. Decidimos então focar em dois grandes grupos de genes relacionados com a resposta imune: o complexo principal de histocompatibilidade [MHC, na sigla em inglês] e o complexo de receptores leucocitários [LRC]. São os genes do MHC que definem, no caso de um transplante, por exemplo, se dois indivíduos são compatíveis ou não”, explica a pesquisadora.

Mesmo com esse filtro a tarefa estava longe de ser trivial. Alguns dos genes que integram esses dois complexos chegam a ter mais de 7 mil formas alternativas, também chamadas de polimorfismos. “Um exemplo de polimorfismo são os diferentes tipos sanguíneos. Existem quatro variantes genéticas dentro do sistema ABO: A, B, AB e O. No caso dos complexos MHC e LRC, alguns genes têm milhares de variantes”, conta a pesquisadora.

Para ajudar na empreitada, o grupo do IB-USP estabeleceu colaboração com Erick Castelli, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu. Recentemente, com apoio da Fapesp, o pesquisador desenvolveu métodos computacionais que facilitam o estudo dos complexos MHC e LRC.

“Imagine que você está tentando montar um quebra-cabeça [o genoma] com base em uma única referência, mas há várias peças muito parecidas e há milhares de possibilidades para uma mesma peça, com alterações muito sutis entre elas, tornando impossível saber onde cada uma se encaixa. O algoritmo se baseia em milhares de sequências já descritas para esses genes para decidir o local de cada peça, fazendo a montagem do genoma de forma muito mais detalhada. O método também permite inferir qual é a sequência de cada cromossomo e qual proteína seria produzida a partir de cada gene”, conta Castelli à Agência Fapesp.

A análise do complexo MHC indicou que variantes de dois genes – conhecidos como MICA e MICB – parecem influenciar a resistência ao Sars-CoV-2. Segundo Castelli, a expressão desses genes normalmente aumenta quando as células estão sob algum tipo de estresse e isso leva à produção de moléculas que se ligam a receptores das NK, sinalizando que tem algo errado com aquela célula.

“No caso do MICA, o polimorfismo mais frequente nos indivíduos infectados aparentemente faz com que a proteína codificada por esse gene seja produzida em maior quantidade, possivelmente na forma solúvel, o que inibe a ativação das células NK. No caso do MICB, entre os suscetíveis, foi 2,5 vezes mais frequente uma variante associada à menor expressão do RNA mensageiro que codifica a proteína ativadora de NK. Os dois caminhos, portanto, levariam à menor ativação dessa barreira imunológica”, explica Castelli.

Segundo o pesquisador, no complexo LRC, foram identificadas variantes de interesse nos genes LILRB1 e LILRB2. “Nos indivíduos infectados, foi cinco vezes mais frequente uma variante do LILRB1 que, pela nossa análise, levaria à maior expressão de receptores que inibem a ação das células NK”, conta Castelli.

As informações são da Galileu.

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