Disputa entre Doria e Bolsonaro pode atrasar cronograma de vacinação contra a Covid

Dória e Bolsonaro: politização do tema preocupa os estados porque pode afetar o cronograma de vacinação. (foto: divulgação)

As disputas políticas entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, ambos de olho nas eleições de 2022, podem atrapalhar o desenvolvimento das vacinas que estão sendo testadas no país, como ficou claro nos tristes episódios registrados na penúltima semana de outubro. A análise é da Folha de São Paulo.

O foco da briga é a vacina chinesa CoronaVac, que está avançada na fase de testes. Na terça-feira 20, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, havia se comprometido numa reunião virtual com governadores a comprar as doses da vacina chinesa, caso o imunizante receba a aprovação final da Anvisa. A negociação entre o estado de São Paulo e o ministério parecia ter vencido uma etapa importante, Doria respirou aliviado e foi para as redes sociais divulgar a novidade.

Menos de 24 horas depois, Bolsonaro, reagindo a protestos de seus apoiadores, usou o mesmo expediente. Foi às redes sociais para negar qualquer compromisso de seu governo com a compra da CoronaVac e desautorizou seu ministro. O post foi seguido de uma entrevista de integrantes do ministério — sem a participação de Pazuello, que está com o coronavírus — em que a posição do presidente foi ratificada.

Doria estava em Brasília nesse dia de forte turbulência e resolveu dobrar a aposta e dar publicidade a toda uma romaria política em busca de apoio para a compra da vacina, que hoje está profundamente associada a sua gestão. Desafeto público de Bolsonaro, o governador foi ao Senado munido de uma maleta com embalagens e frascos da vacina e posou para fotos ao lado de senadores.

Mais cedo, havia proposto dar uma entrevista coletiva na residência do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, num movimento claro de inclusão do Congresso na disputa. Mas não foi bem-sucedido. Maia não recebeu o governador, alegando estar indisposto. Por fim, Doria divulgou o ofício que havia recebido de Pazuello no dia anterior se comprometendo com a compra da vacina chinesa.

A atitude de Bolsonaro não foi uma surpresa. O presidente é conhecido por nutrir posições negacionistas sobre a gravidade da pandemia e por defender receitas de cura sem amparo científico. Também são amplamente conhecidos sua implicância ideológica com a China e seu hábito de interferir em políticas anunciadas pelo Ministério da Saúde. O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta contou que, no período em que comandou a pasta, embora ainda não houvesse discussões avançadas sobre a vacina, sempre que a palavra China era evocada uma confusão se armava.

Mandetta relatou que não era incomum que se referissem, no Palácio do Planalto, ao embaixador chinês como “agitador comunista”. “Eles tinham uma paranoia de que o embaixador chinês tinha estado no Chile e na Argentina e trabalhava para fazer agitações de esquerda.” Também havia restrições a qualquer agenda que envolvesse o governador de São Paulo. “O problema dele é o entorno, são os terraplanistas, a rede social, gente que não tem a menor noção de como se faz uma vacina. O Butantan não começou no governo Doria. É um instituto importantíssimo. Bolsonaro tinha de estar parabenizando o trabalho deles.”

No governo paulista, há algumas semanas já se discutia que a disputa política entre presidente e governador poderia azedar as negociações com o Ministério da Saúde e o Instituto Butantan, dirigido por Dimas Covas. Nas palavras de um integrante da linha de frente do combate ao coronavírus no estado, “Bolsonaro não ia querer jogar água no moinho do Doria”. Segundo ÉPOCA apurou, em uma das reuniões realizadas às sextas-feiras entre estado de São Paulo, prefeitura de São Paulo, Comitê do Novo Coronavírus e o Butantan,

Dimas Covas fez um retrato preocupante das negociações. Na ocasião, Doria avaliou que o ministério estava tentando ganhar tempo e que o estado precisava pensar numa alternativa para custear a compra. O plano B seria fazer uma vacinação apenas da população paulista, caso a vacina fosse realmente aprovada e Bolsonaro resistisse em usá-la. O problema é de onde viria o dinheiro para comprar as doses. O plano A é que o Ministério da Saúde compre os 46 milhões de doses que o laboratório chinês entregará ao Butantan até dezembro. O feito seria usado, indiscutivelmente, como cartada em uma possível candidatura de Doria à Presidência em 2022.

A despeito das intenções políticas do governador de São Paulo, comprar doses da vacina antes da aprovação final tem sido uma tática adotada por outros países. Diante do cenário anômalo criado por uma pandemia sem precedentes, os critérios de prazos e apostas variam em relação ao que era tido como “normal” até então. Por isso, não soa estranho que, em alguns casos, a produção e compra de vacinas aconteça mesmo antes da confirmação de eficácia.

“Partir para a produção industrial é uma postura correta porque não vai ser nada fácil, depois de uma aprovação, começar a produzir do zero. Isso demandaria ainda compra de reagente, adaptação da produção. O prejuízo de descartar (vacinas que eventualmente não sejam aprovadas) parece um mal menor”, explicou o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

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