Covid-19: Falsa sensação de ‘melhora’ esconde catástrofe da 3ª onda da pandemia

Com o pai sufocando em uma maca em meio ao corredor do Hospital Estadual Platão Araújo, em Manaus, Ronaldo Vasconcelos abanava o homem de 61 anos que minutos antes havia passado por uma parada cardiorrespiratória. Sem conseguir uma vaga em UTI que o socorresse, o oxigênio comprado por Vasconcelos não foi suficiente para manter José Ferreira Vasconcelos vivo, e ele morreu no final de Janeiro, em meio à pior crise vivida pela capital amazonense durante a pandemia da Covid-19.

Passados quase quatro meses, Manaus respira aliviada com números de novos casos, ocupação de leitos e óbitos muito melhores que os observados no final de janeiro, quando colapsado, o sistema de saúde não foi capaz de cuidar de seus pacientes, que foram enviados para tratamento em outros Estados. Especialistas apontam, no entanto, para o risco de uma terceira onda ainda mais agressiva e fatal no horizonte não apenas de Manaus, mas de regiões espalhadas por todo o país.

“Temos atualmente uma ilusão de tranquilidade gerada pela queda após termos passado, primeiramente em Manaus, e depois no resto do país, por um pico muito agressivo, mas a realidade é muito preocupante; estamos hoje, no melhor momento de controle da pandemia em 2021, com indicadores piores que aqueles dos momentos mais críticos de 2020”, alerta o coordenador do Programa Infogripe, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), Marcelo Gomes. Monitorando os casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em todo o país, os pesquisadores vêm alertando para as medidas de flexibilização do isolamento social em diferentes regiões.

“Estamos normalizando situações de calamidade porque a força do último pico fez a população perder a referência”, comenta Gomes. Ele explica que a grande maioria das regiões do país se encaixa, neste melhor momento de 2021, apresenta o pior nível de transmissão do vírus segundo classificação do CDC, o centro de controle de doenças dos EUA. Com transmissão superior a 10 novos casos semanais por 100 mil habitantes, todo o país tem nível crítico de circulação do vírus.

“Tivemos queda no número de casos por um tempo muito curto, atingindo uma estabilidade com internações e óbitos muito altos. Qualquer nova alta já não haverá tempo hábil de resposta, porque estamos decolando já de um nível muito grave.

Segundo os dados do Info Gripe, a maioria das macrorregiões de saúde do país já tem sinais de retomada dos casos ou, nos melhores casos, interrupção das quedas. Os Estados que mais preocupam são Amazonas, Maranhão, Rio Grande do Sul, Paraíba, Paraná e Tocantins. Suas capitais também têm sinal vermelho dos pesquisadores, além de outras oito que já interromperam a queda.

UTIs lotadas

Manaus e o Amazonas têm, ambos, algumas das menores taxas de ocupação de leitos hospitalares comparado, respectivamente, com capitais e Estados. Para Marcus Guerra, Diretor-Presidente da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, é necessário manter, no entanto, os cuidados. Ele aponta para isso a baixa quantidade de pessoas infectadas pelo vírus até o momento – em torno de 10% -, associada à circulação de pessoas, baixa adesão às máscaras e fenômenos regionais.

“Com as enchentes que estão ocorrendo, há cada vez mais gente deixando suas casas e se aglomerando em casas de parentes, moradias que sabemos serem já pequenas”, comenta o infectologista. “Nove em cada dez pessoas não tem anticorpos, seja por vacina, seja por resistir à doença; com o retorno às aulas ainda no período de chuvas, o risco de transmissão do vírus entre essa população não pode ser desprezado”, diz, defendendo o retorno às aulas presenciais somente após o fim do período chuvoso.

Ao contrário do Amazonas, mais da metade das Unidades da Federação tem 80% ou mais de ocupação de UTIs, e o mesmo ocorre com as capitais. Em meio a medidas de flexibilização de atividades econômicas, retomada das aulas presenciais e vacinação avançando a passos lentos, 17 estados voltaram a registrar crescimento na ocupação dos leitos de terapia intensiva para Covid-19.

Sete estados permanecem em situação crítica, com uma ocupação acima de 90% dos leitos: Pernambuco, Paraná, Rio Grande do Norte, Ceará, Santa Catarina, Piauí e Sergipe. Entre as capitais, nove têm ocupação acima de 90%.

Mesmo com índices alarmantes, ainda não há um movimento nos estados para ampliar restrições e conter a curva da disseminação do vírus. Ao contrário: parte dos governadores ampliou a flexibilização argumentando que há estabilidade nos índices de contágio e de ocupação de leitos.

É justamente estas medidas, avaliadas como precoces, que mais preocupam os epidemiologistas. “Estamos fazendo roleta russa com a cabeça dos outros ao permitir que o vírus circule livremente; é inaceitável que a população de Manaus e muitos outros locais esteja mergulhada em uma espécie de experimento natural, onde parecem usar as cidades como grandes laboratórios”, critica Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz Amazônia. Para ele, o pico observado em Manaus no começo do ano é mais uma prova de que a teoria da imunidade de rebanho, defendida por algumas autoridades para justificar a circulação, é uma falácia.

“Apesar de repetida, ela nunca foi aceita no meio científico, é preciso deixar isso muito claro; é absurdo e antiético submeter a população a isto”, crítica.

Em situação crítica, Pernambuco e Paraná estão entre os estados que foram na contramão dos demais e intensificaram medidas restritivas, ao menos nas regiões do estado com maior índice de contágio.

Em Pernambuco, são 1.621 doentes graves internados em UTIs na rede pública estadual e uma ocupação de 97% dos leitos. É o maior número desde o início da pandemia.

Um estudo publicado em Abril no periódico científico Lancet analisou mais de 880.000 internações por Covid e SRAG em todo o país, e revelou que mais de um terço das pessoas que entram nos hospitais, não saem deles com vida. “Estamos há um ano discutindo questões irrelevantes como cloroquina e tratamento precoce, o que passa a impressão de que nesses 12 meses não se aprendeu nada, quando na verdade muito conhecimento foi produzido. Falta vontade política de discutir e aplicar”, lamenta Bozza.

Para Gomes, estes dados revelam que o sistema de bandeiras aplicado em todo o país deveria levar mais em conta os índices de transmissão que a de ocupação hospitalar. “Os hospitais contém aquelas mortes evitáveis, mas não podemos esquecer que esses mais de 30% que não saem das instituições são pessoas, não apenas números”, comenta o pesquisador.

Cemitérios lotados e novas covas abertas marcaram 2ª onda da Covid-19 em Manaus, em janeiro de 2021. (Foto: Gustavo Basso/Yahoo Notícias)

Explosão de óbitos

Uma projeção feita pelo Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação da Universidade de Washington, nos EUA, indicou que o Brasil poderá chegar à marca de 750.000 mortes por covid-19 até o fim de agosto, caso não acelere o ritmo de imunização. No pior cenário projetado pelo Instituto americano, que é usado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) — braço latino-americano da Organização Mundial da Saúde (OMS)—, onde as pessoas vacinadas deixariam de usar a máscara, o país alcançaria 940.000 mortes até o fim de setembro. Até hoje, o Ministério da Saúde registra 439.050 mortes pelo vírus entre quase 16 milhões de casos confirmados.

Uma pesquisa feita entre os dias 11 e 17 de maio pelo SindHosp, o Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios de São Paulo, corrobora com as projeções feitas pelos analistas norte-americanos. Segundo ela, 85% dos leitos de UTI em hospitais privados do Estado estão com 80% ou mais de ocupação —em 30 de abril, 79% das entidades tinham a mesma ocupação. Entre os mais lotados, 39% possuem mais de 90% de ocupação. Nas contas do Governo paulista, as UTIs de São Paulo registraram 78,5% de ocupação nesta terça-feira (18).

Para evitar uma terceira onda devastadora, a aceleração na vacinação é uma das medidas centrais apontadas pelos especialistas. Segundo painel da Universidade de Oxford, o Brasil atingiu média diária de aplicação de 1,1 milhão de doses em 13 de abril, mas a quantidade foi caindo ao longo do mês e chegou a 429 mil doses no último dia 12 de maio. O país tem hoje cerca de 70 mil novos casos diários da doença, e apenas 9% de brasileiros vacinados com a segunda dose.

O maior temor agora é que a alta transmissão associada à eficácia limitada das vacinas diminua ainda mais a eficiência real da imunização. O pior dos cenários, no entanto, seria o surgimento de uma nova mutação que drible o efeito das vacinas, obrigando as pesquisas e as campanhas a iniciarem do zero. Um risco visto como alto, uma vez que quanto maior a transmissão, maior o número de mutações.

As informações são do Yahoo.

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