Como a crise hídrica fez uma cachoeira secar completamente?

A aproximadamente 60 quilômetros de Cuiabá (MT), a cidade de Chapada dos Guimarães chama atenção dos turistas pelas belezas naturais. Um dos motivos é a cachoeira Véu de Noiva localizada no Parque Nacional da Chapada dos Guimarães.

Com queda de 86 metros, ela costumava atrair até 150 mil pessoas por ano. No entanto, o que os visitantes encontram atualmente é um cenário de seca, reflexo da crise hídrica que atinge todo o país. A Véu de Noiva, no início de setembro, transformou-se em um fio de água.

Em julho, Chapada dos Guimarães decretou situação de emergência, posteriormente reconhecida pelo Governo do Estado. Mais de 5,6 mil moradores da zona rural encontram-se sem abastecimento regular de água potável.

A assistência é dada de forma precária por um único caminhão pipa do poder público municipal. Matriz econômica do município, o ecoturismo é diretamente prejudicado devido ao exaurimento hídrico.

Morador da cidade há 20 anos, Antônio Cabral Souza, 40, comenta que a seca deste ano foi uma das piores.

“[Todo ano a cachoeira] fica com pouca água, mas seca deste jeito, não. Nunca tinha visto. Nos últimos dois anos não tem chovido o suficiente”, diz.

De São Leopoldo, Rio Grande do Sul, o técnico em informática Ricardo Padilha, 34, percorreu 2.200 km até a capital do Mato Grosso. Durante a visita, resolveu conhecer Chapada dos Guimarães e em seu último dia de viagem, aproveitou para passar pelo Véu de Noiva depois de receber algumas recomendações. No entanto, o que ele presenciou não estava dentro do esperado.

“Esperava algo maior, algo mais bonito do que eu estou vendo hoje”, pontua.

O QUE EXPLICA A CACHOEIRA VÉU DE NOIVA SECAR?

Para a bióloga e pesquisadora associada do mestrado em recursos hídricos da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), Daniela Maimoni de Figueiredo, dois principais fatores explicam a diminuição do volume de água na cachoeira.

As mudanças climáticas e a drenagem da bacia do Rio Coxipózinho, cuja nascente fica na área urbana do município.

“A redução das chuvas tem a ver com as mudanças climáticas em âmbito global. Sabemos que no período de chuva, que começou em dezembro de ano passado e foi até abril deste ano, choveu em torno de 40% a menos da média histórica na região”, diz.

Com área arenítica, o solo da região funciona como uma esponja. “Na época da chuva, a água vai infiltrar, absorver e ficar no lençol freático armazenado. Na época da seca, essa água é liberada lentamente, mantendo o fluxo de água dos rios mesmo nesse período. Deveria ter água sendo mantida para os córregos, inclusive para o Coxipózinho que forma a cachoeira Véu de Noiva”, pontua.

No segundo fator estão as captações de água no curso do rio que despenca na cachoeira. Entre as principais atividades está a hidroponia, piscicultura e plantação de grandes hortas. Mesmo com a redução de chuvas ano após ano, a captação continua sendo praticamente a mesma.

“Com a redução do volume de água, manutenção dessa captação para os usos, o rio não teve água suficiente e a cachoeira praticamente secou”, afirma.

Diante da situação ambiental, a especialista em recursos hídricos afirma que é preciso rever as captações de uso da água, pois os pesquisadores climáticos já alertam que os próximos anos serão de mais seca.

“É preciso rever o quanto de água está sendo captado, somente nessa época de seca, para que os usos sejam mantidos, inclusive para o turismo”, cita a bióloga que pontua um nítido conflito de uso da água entre aqueles que fazem captação e os que dependem do turismo.

Em uma situação normal de nível hídrico, a cachoeira Véu de Noiva ostenta uma formosa queda d’água. (Foto: Getty Images)

FLORESTAS E ÁGUA, UMA RELAÇÃO INERENTE

A seca que causa a crise hídrica também é reflexo do desmatamento e queimadas. Sem árvores, fica cada vez mais difícil a formação dos rios voadores responsáveis por levar a umidade da Bacia Amazônica para Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil.

Em 2020, o Pantanal mato-grossense foi o bioma mais afetado do estado e teve 30% de sua área consumida pelo fogo. De acordo com dados do Instituto Centro de Vida (ICV), de janeiro a agosto foram 940 mil hectares queimados, enquanto 2021 contabiliza 88 mil.

Ainda conforme o Instituto, a área total atingida pelo fogo em Mato Grosso de janeiro até o dia 31 de agosto é de 2,14 milhões de hectares, o que representa uma diminuição de cerca de 22% em relação ao mesmo período do ano passado, quando o estado teve incendiados 2,7 milhões de hectares.

O número representa uma área total equivalente a seis vezes e meia a área de Cuiabá, ou 14 vezes o município de São Paulo.

Entre os biomas de Mato Grosso, Amazônia e Cerrado lideram e mantêm o mesmo ritmo de pressão pelo fogo do ano passado. Apenas o Pantanal registrou diminuição. Foram mais de 1 milhão de hectares atingidos na Amazônia (51%), seguida do Cerrado com 956,3 mil hectares (45%) do Pantanal com 88,7 mil hectares (4%)

Atualmente, o Parque Estadual Encontro das Águas (PEEA), conhecido por conter o maior número de onças pintadas do mundo, está em chamas. O fogo atingiu o parque neste fim de semana e a área afetada ainda é calculada.

A irregularidade de chuvas não acontece só no estado de Mato Grosso. Com níveis baixos em reservatórios de todo país, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) elevou – ainda mais – o preço da energia elétrica. Desde 1º de julho, o consumidor paga R$ 9,49 centavos a mais por cada 100 kwh consumidos, ou seja, um aumento de 52% em relação ao valor anterior.

“Vivemos um momento bastante crítico, que está afetando vários usos da água como hidrovias e geração de energia elétrica. Precisamos rever uma série de outorgas de uso da água e, principalmente, focar na gestão e governança, porque é possível com uma boa gestão, que essa crise seja bem minimizada, se forem feitas as medidas corretas em tempo correto”, diz Daniela Maimoni.

A Usina de Manso, localizada no rio Manso, principal afluente do rio Cuiabá, está operando com 19% de sua capacidade total. O reservatório atinge uma área de 427 km² nos municípios de Chapada dos Guimarães e Nova Brasilândia.

Na semana passada, o rio Cuiabá, responsável por abastecer quase toda população da região metropolitana chegou ao volume de 0,04, índice mais baixo desde 1933, quando começaram as medições.

CRISE HÍDRICA X AGRONEGÓCIO

Mato Grosso é líder nacional na produção de soja, milho, algodão e de rebanho bovino. Para a pesquisadora, existe uma ligação entre a crise hídrica e o agronegócio.

“Não tem como negar que boa parte da crise hídrica que estamos vivendo na região se deve ao desmatamento de extensas áreas pela atividade agropecuária. A gente precisa rever esse modelo de uso da terra, de produção, de commodities agrícolas para exportação, basicamente, porque é insustentável”, afirma.

“O agronegócio é um modelo que precisa de extensas áreas desmatadas para poder ter alta produtividade com muito insumo, agrotóxico, fertilizante. Se você pensar no ciclo da água, ele reduz a infiltração de água no solo, reduz o abastecimento de água subterrâneo que por sua vez mantem o fluxo dos rios. Quanto mais você desmata, menos infiltração de água ocorre, menos evaporação das plantas você vai ter para formar nuvens”, afirma.

Daniela Maimoni ainda pontua que o modelo do agronegócio é insustentável para si mesmo. “Ele vem sendo uma das causas da redução de chuvas para si mesmo e para própria população agrícola no estado”.

Além disso, há a drenagem de áreas úmidas, conforme ela explica.

“Áreas úmidas são extremamente importantes para o abastecimento do lençol freático, para produção de água, onde muitas áreas são drenadas para aumentar as terras agricultáveis. Temos o desmatamento das matas ciliares, a redução da área proteção ao longo dos córregos e o último código florestal reduziu ainda mais isso. Houve um agravamento dessa situação. Além do soterramento de nascentes que são fundamentais. Todos esses fatores juntos estão sendo agravados com as mudanças climáticas”, finaliza.

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