Caso Moïse: os fatores que levam a tantos casos de linchamento no Brasil

O brutal assassinato do imigrante congolês Moïse Kabagambe por um grupo no Rio de Janeiro volta a colocar em atenção um tipo de violência que é constante no Brasil: o linchamento.

As características próprias desse caso “sugerem um alargamento dos motivos de linchamentos no Brasil”, diz o sociólogo José de Souza Martins, que estuda há 30 anos esse tipo de violência no país e é autor do livro Linchamentos – A Justiça Popular no Brasil.

Ele afirma que há agora motivações “que não correspondem ao que a tradição popular até há alguns anos considerava motivo para linchar. Esse caso envolve cobrar o débito por um trabalho realizado”, diz o sociólogo José de Souza Martins, que estuda há 30 anos esse tipo de violência no país.

Moïse, de 24 anos, foi espancado até a morte no dia 24 de janeiro, depois de cobrar o pagamento de diárias atrasadas no quiosque onde trabalhava na praia da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio.

O sociólogo afirma que continua “monitorando, diariamente, essas ocorrências no Brasil. Hoje, há no país ao menos um linchamento ou tentativa por dia. No geral, dois ou três”.

“Mas o número pode ser maior”, diz.

“Isso tem ocorrido em vários países na América Latina, África e Ásia. Mesmo nos Estados Unidos, ainda que em escala muito pequena, ressurgiram os casos. Praticamente em todas essas áreas os linchamentos decorreram com frequência da violação de valores e costumes da tradição, morais ou religiosos”, afirma Souza Martins.

“No Brasil não tem sido diferente. Crenças populares tradicionais podem ser mais acentuadas como fator em uns países, como em Moçambique. Aqui temos tido casos do tipo, como foi o da dona de casa de Guarujá, suspeita de raptar crianças para magia negra. O que era completamente falso.”

Em 2014, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi alvo de um boato em uma página do Facebook dizendo que a dona de casa sequestrava crianças para utilizá-las em rituais de magia negra em Guarujá, litoral paulista. A história era falsa e Fabiane, inocente. A família dela processa a rede social em uma ação por danos morais.

Em seu livro, o sociólogo analisa seis décadas de casos. Em seu levantamento, 2.579 pessoas foram vítimas de linchamento ou tentativa. Desse total, 1.150 (44,6%) foram salvas, em mais de 90% das vezes pela polícia. Outras 1.221 (47,3%) foram de fato alcançadas fisicamente nas agressões – feridas ou mortas – em ataques brutais.

(Foto: Google)

Participação de mulheres e crianças

Ele afirma que “o fator da morte [no linchamento] é o conjunto dos atos violentos, mesmo daqueles que do linchamento participam ao açular [incitar] os mais diretamente envolvidos no ato. Não é raro que dos linchamentos participem mulheres e até crianças. Com base no direito brasileiro é praticamente impossível impor uma sentença e executá-la em casos assim”.

Em um processo ocorrido no oeste de Santa Catarina, um juiz resolveu dar andamento à ação penal e levou os acusados a julgamento. “Como é o júri que julga, dos 23 identificados e acusados, todos foram absolvidos, menos um, o mais pobre, condenado a 7 anos de prisão”, relata o sociólogo.

Sobre o componente racial nesse tipo de violência, ele aponta que há mais crueldade quando um negro é alvo de uma tentativa de linchamento.

“Nos casos que estudei, não é necessariamente a cor da pele ou a raça a motivação inicial para linchar. Nos primeiros minutos da violência, esse é o quadro. No decorrer do ato, se a vítima for negra, da metade em diante de sua duração, o índice de crueldade tende a aumentar em comparação com o caso idêntico de uma pessoa branca”, diz.

“No caso de Moïse, uma gravação mostra que um dos linchadores volta ao corpo inerte e desfecha nela várias pauladas adicionais.”

O número de participantes nos linchamentos sugere também que essa prática tem aprovação disseminada não só na participação direta, mas também na omissão dos que sabem de sua ocorrência ou testemunham.

“É verdade que os linchamentos são interrompidos porque alguma testemunha alerta a polícia. Ou seja, se numericamente há muitos aprovadores de linchamentos, estruturalmente há também, em muitas das situações, pessoas que agem para que as instituições sejam mobilizadas e deem aos casos o enquadramento e o tratamento que a lei prevê.”

Para Ariadne Natal, pesquisadora do Peace Research Institute Frankfurt, “esse tipo de evento indica uma desumanização enorme, um descaso com a vida humana que é colocada como descartável de maneira muito evidente”.

“Os linchamentos apontam quem são as pessoas descartáveis na nossa sociedade e justamente por eles acontecerem às vistas de todo mundo, por ter participações de pessoas que não são previamente organizadas, existe um acordo tácito sobre quem são as pessoas matáveis.”

Parentes e amigos de Moïse Kabamgabe fizeram protesto na Barra da Tijuca pedindo Justiça (Foto: Divulgação)

A dificuldade sobre a dimensão

Souza Martins afirma que no decorrer de décadas de análise sobre linchamentos os locais com mais casos têm mudado. Na época da publicação de seu livro (2015), os três primeiros eram São Paulo, Bahia e Rio. Mas já havia indícios dos deslocamentos das ocorrências para o centro-norte do país e a região Norte.

“Hoje, o maior número ocorre em Manaus, mas tem sido significativo no Rio de Janeiro. O deslocamento das predominâncias não quer dizer que os linchamentos tenham deixado de ocorrer onde ocorriam majoritariamente”.

Em julho de 2019 o jornal A Crítica, de Manaus, registrava o crescimento desse tipo de violência na capital amazonense e citava que o caso mais recente era de um adolescente de 16 anos assassinado a pauladas suspeito de assaltar um ônibus na zona norte da cidade.

O jornal O Globo fez um levantamento que apontou 12 linchamentos só em praias do Rio em um período de três semanas em janeiro deste ano.

“Infelizmente a gente não tem estatísticas oficiais desse tipo de caso, eles podem ser registrados dependendo do desfecho como um homicídio, como uma lesão corporal, como tentativa de homicídio, então a gente depende principalmente das pesquisas e as pesquisas usam como fonte a imprensa. Então depende de levantamentos que são bastante custosos e demandam muito tempo” diz Natal, que analisou 500 casos de linchamento na região metropolitana de São Paulo entre 1980 e 2009.

Souza Martins diz que “seria impossível fazer a pesquisa com base numa amostra de registros policiais, pois raramente há menção a linchamentos. Alguns jornais não definem linchamentos como homicídios ou tentativas de homicídio. Examino cada caso das notícias recebidas, faço uma análise das características do evento e verifico se posso defini-lo ou não, sociologicamente, como linchamento. Fiz um estudo específico da qualidade do noticiário.”

Hoje, há no país ao menos um linchamento ou tentativa por dia. No geral, dois ou três”, diz o sociólogo José de Souza Martins, que estuda há 30 anos esse tipo de violência no país e é autor do livro Linchamentos – A Justiça Popular no Brasil (Foto: Marcos Santos – USP Imagens)

Novos contextos

Para Souza Martins, o caso de Moïse mostra um contexto de trabalho para o linchamento do trabalhador congolês. “A debilitação da relação laboral em decorrência da reforma trabalhista torna mais difícil a defesa dos direitos dos que estão à margem das formas propriamente legais e contratuais de trabalho”.

Jacqueline Sinhoretto, professora de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública , diz que “o pano de fundo no caso do Moïse é uma violência que aparece num contexto de trabalho precário que envolve tanto ele quanto seus assassinos”.

Ela diz que é preciso questionar se o vínculo de alguns quiosques no Rio com seus empregados envolve segurança privada.

“De dia eles [os suspeitos da morte] trabalham como garçons, como intermediários de uma troca comercial e de noite permanecem no local como seguranças, à noite. Uma situação que me parece muito próxima de trabalho análogo ao escravo ou no mínimo de um trabalho em condições ilegais. Ou o tipo de trabalho que a gente chamaria de trabalho indecente, de uma exploração excessiva do trabalho”.

A socióloga afirma que falta responder algumas perguntas: “Eles têm cobertura para fazer essa segurança por expedientes violentos? Alguém está dando cobertura ou instruções para eles agirem de forma violenta? Quer dizer, há algo além da precariedade do vínculo: que trabalho é esse?”.

Ariadne Natal cita a falta de uma política nacional de segurança pública: “A gente mal engatinhou na construção de uma, são políticas que não tem continuidade entre um governo e outro, são planos que são feitos e que não são levados a cabo”.

Ela diz que “a gente tem uma carência de direcionamento, para que serve essa determinada instituição, como ela vai ser empregada. Não basta só a existência dessas instituições”.

“É quase como se deixassem para ser resolvido pelos próprios cidadãos.”

As informações são da BBC Brasil.

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