As relações de um auditor da Sefaz RJ com o GAESF 

Empresa denuncia que auditor da Secretaria de Fazenda do Rio operou como agente híbrido  *Por Douglas Fernandes | Fonte Exclusiva

Sefaz RJ: a polêmica cessão do auditor Carlos Henrique Ferrari para o GAESF do MPRJ

Processo da Havita na 35ª Câmara Criminal do Rio de Janeiro | Foto: Reprodução.

Brasília – Um processo que corre na 35ª Vara Criminal do TJRJ (Tribunal de Justiça do Rio), detalha a relação de Carlos Henrique Ferrari, um auditor da Sefaz RJ (Secretaria de Fazenda do Rio) com o Grupo de Atuação Especializada em Combate à Sonegação Fiscal e aos Ilícitos contra a Ordem Tributária (GAESF), do Ministério Público do Rio (MPRJ). 

Ele é um fiscal da Sefaz RJ, que ficou cedido por mais de 6 anos à promotoria, e recebendo o salário de auditor fiscal. 

Sua senha de acesso a base de dados confidenciais da Receita ficou ativa durante boa parte deste período de cessão funcional, segundo denunciou o jornalista Carlos Magnavita, em sua coluna no jornal Correio da Manhã, em 21 de dezembro de 2021, na nota intitulada “Senhas Quase Eternas”

Não é simplesmente uma senha. É uma chave virtual com acesso aos dados fiscais e bancários de milhares de pessoas e empresas, que só permitiria ao Ministério Público acessar por meio de autorização judicial, segundo a legislação em vigor e os entendimentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do STF (Supremo Tribunal Federal). 

Seriam atividades paralelas vinculadas a um setor de inteligência da Sefaz/RJ, operadas em um bunker à parte, monitorando emissões de notas fiscais, com o número de CPFs de autoridades e criando uma relação incestuosa com outros setores de investigação”.

Tudo isso daria poderes para um possível contorno às normas visando obter  informações protegidas por sigilo, o que explica a condição de “homem de ouro”.

A senha de usuário “cferrari” foi utilizada para acesso até o dia 23 de agosto de 2021, segundo destaca a nota publicada  no dia 31 de maio de 2022. Não consta que essas informações tenham sido contestadas, ainda que Ferrari continue operando a serviço da promotoria. 

Em tese, não existe ilegalidade na cessão de um servidor para outro órgão ou instituição, desde que siga todos os ritos legais. Contudo, em se tratando de qualquer auditor fiscal nesses casos, seu acesso à base de dados deveria ser imediatamente suspenso, ainda mais operando para um órgão que estará encarregado de denunciar e até mesmo investigar suspeitos. 

“Um eventual acesso privilegiado seria um desequilíbrio na chamada paridade de armas. Os processos decorrentes de investigações fundamentadas em acessos ilegais são literalmente nulos. É o que no direito se define como fruto da árvore envenenada”, destaca o advogado e ex-conselheiro da OAB-RJ, Antônio Maurício Costa. 

Senhas e acesso 

Não são apenas as informações da Receita Estadual que estavam ao alcance do detentor da senha. Sua senha de usuário também permitia acesso aos dados da Receita Federal, que mantém convênio de compartilhamento de informações com a Sefaz/RJ. Por este caminho, portanto, todas as informações fiscais e tributárias, indistintamente, estão no radar. 

Sede da Sefaz RJ | Foto: Reprodução.

Em junho do ano passado, a Agência Fonte Exclusiva iniciou uma reportagem sobre esta relação perigosa que abre caminhos para que promotores tenham acesso às informações fiscais de pessoas físicas e jurídicas antes de qualquer autorização judicial. 

Tentou ouvir todos os órgãos envolvidos e as respostas por e-mail sempre foram evasivas ou em alguns casos, nunca chegaram. 

A assessoria da Receita Federal informou na ocasião que o órgão “não comenta sigilo fiscal” e recomendou procurar informações com a Sefaz RJ e o Ministério Público Estadual. 

A Sefaz/RJ, também por e-mail, fez uma opção preferencial pela burocracia, recomendando buscar as informações por meio de solicitação via protocolo, com cópia de documentos dos requerentes. Já o Ministério Público Estadual não respondeu a solicitação de informação. 

Durante este período de cessão do auditor Ferrari, o GAESF deflagrou várias operações e o que se pergunta no momento é quantas vezes o auditor cedido acessou os dados da Receita nos últimos anos. É pertinente saber também quais dados acessou e quais os períodos. É algo que, talvez, uma auditoria eficiente desvendaria. A resposta pode ser a senha para anular vários processos em andamento. 

As relações entre órgãos do executivo, Ministério Público e até do judiciário é uma quebra da independência entre os poderes, que pode gerar situações como as verificadas na Operação Lava Jato, onde promotores e juízes entrelaçados combinavam fundamentação para acusações visando gerar sentenças condenatórias dos réus.

No caso do Estado do Rio, um auditor com acesso a base de dados do órgão, cedido ao Ministério Público e ainda com acesso amplo e irrestrito às informações fiscais e tributárias de contribuintes já configura uma situação no mínimo temerária. 

A relação se agrava quando esse mesmo auditor cedido consegue acesso aos servidores da Sefaz RJ com pedidos de celeridade em pareceres, sem obediência aos ritos legais, para favorecer o trabalho de acusação e investigação da promotoria, além de participar de oitivas de empresas investigadas no âmbito da Sefaz RJ, segundo denúncias no processo E-04/2011/22895/2021, que corre na 35ª Vara Criminal do TJRJ.  

O processo, em um trecho da página 98, narra ainda outros procedimentos sui generis: 

“[…] Apesar de reconhecermos o brilhante trabalho do coordenador Luiz Henrique Faria da Costa, que teve até o cuidado de nos procurar por telefone antes de emitir o parecer, solicitamos encarecidamente que, em nome da economicidade e eficiência, a representação seja liberada de forma que está, exceção feita para discriminação feita por contribuintes específicos […].”

Atenção para o grifo no texto acima. Em nome do que seria economicidade e eficiência, o despacho deveria ser encaminhado da forma que estivesse. Agora vem o trecho mais chocante à luz do Direito: 

“[…] Uma vez que temos o prazer de contar com o AFRE Carlos Henrique Ferrari, que faz a intermediação institucional, ele mesmo também nos solicitou que apressássemos a tramitação dessa forma como está para que o MPRJ possa cumprir os ritos processuais, penais, inerentes à rotina deles […]”. 

“[…] Sendo assim, reforçamos o pedido para que o PPA seja tramitado sem o rigor de apresentar as cópias documentais que normalmente são requeridas […]”

Os trechos foram citados em processo que tem como ré a empresa Havita Importação e Exportação Ltda. Com base em documentos da Sefaz RJ, a empresa acusada de montar um esquema para sonegação de ICMS, arguiu cerceamento do direito de defesa. 

A empresa é acusada de simular compras com outras empresas de fachada para gerar créditos tributários fraudulentos. O auditor cedido, pelo que está narrado, não é apenas um servidor que presta assessoria técnica aos promotores. Ele é um “intermediador”, que acessava dados da Receita, participou de oitiva de um dos sócios da empresa no MPRJ, fazendo intervenções, e ainda solicitava aos colegas auditores, por meio de uma influência que confunde-se com superioridade hierárquica, um desvio aos ritos processuais para atender a necessidade de celeridade dos promotores. 

Os fatos demonstram que a Operação Lava Jato morreu, mas, pelo menos no Rio de Janeiro, consolidou o costume de contornar a lei para combater crimes.

Um costume perverso, criticado pelo criminalista Fernando Augusto Fernandez, em sua obra, Geopolítica da Intervenção (editora Geração 2022, 523 pág., 2022, 2ª edição), sobre os descaminhos da Operação Lava Jato. 

“Os argumentos jurídicos são meras retóricas para criar e deturpar a Constituição e interpretá-la não como ela é, como essa visão de mundo que não tem as garantias individuais do cidadão o limite do Estado, mas para desfazer essas garantias e permitir que um grupo de autoridades que é, infelizmente, a maioria do Judiciário, posse exercer o poder prendendo, acreditando que realizam uma missão de limpeza, quando na verdade, destroem o que é fundante na nossa frágil democracia, a Constituição de 88”, destaca o autor na página 507, na obra que se tornou uma referência sobre o maior escândalo de conluio entre membros do Poder Judiciário e do Ministério Público para condenar réus investigados por corrupção.    

O ministro do STF, Gilmar Mendes, também é um crítico dos descaminhos processuais para combater crimes. 

“Não se combate crime cometendo crime. O agente público não pode cometer crime, todos estão submetidos à lei. Quando algum agente se coloca acima da lei, o sistema rui e nós temos que nos preocupar. Ou ele é trazido de volta ou temos um autêntico soberano”, destacou o ministro em entrevista à mídia brasileira, ao comentar os desvios da Operação Lava Jato. 

No caso do auditor Ferrari, mesmo após o escândalo da Vaza Jato, guardadas as devidas proporções e peculiaridades, o habitus sobrevive fazendo da Sefaz RJ um puxadinho da GAESF.

Trajetória profissional

Carlos Henrique Ferrari é um servidor concursado na Secretaria de Estado de Fazenda (Sefaz RJ), mas seu poder interno emana da ligação com o Ministério Público Estadual e também nos enlaces com a Corregedoria Interna do fisco estadual. 

A Sefaz é a única secretaria de Fazenda Estadual em que os seus corregedores são do quadro externo. São procuradores que ocupam a função por meio de função gratificada em cargo comissionado, ou seja, é indicação política.  

Antes de ingressar nos quadros da Receita Estadual, Ferrari enfrentou algumas situações embaraçosas, envolvendo denúncias de ameaça. Em Volta Redonda, no sul Fluminense, foi acusado de ameaça contra à vida do seu ex-sócio Hugo Vinicius da Costa, conforme demonstra o Termo Circunstanciado de nº 093-00595/2007, datado  12 de fevereiro de 2007, na 93ª Delegacia de Polícia (DP)

A motivação seria uma dívida de R$ 50 mil remanescente da sociedade entre ambos na empresa Here Control Teleinformática Ltda, fato testemunhado por José Geraldo da Costa, irmão da vítima.

“[…] Relatou o nacional Hugo Vinicius da Costa que foi ameaçado de morte pelo Sr. Carlos Henrique Ferrari, no dia 07-02-2007, por volta das 16:30, quando estava no Hotel Bela Vista. Foi testemunha da ameaça o seu irmão José Geraldo Costa. Esclarece que o Sr. Carlos Henrique já foi sócio da empresa e vendeu sua parte no ano de 2006. Segundo o comunicante, o Sr. Carlos Henrique Ferrari não reside mais em Volta Redonda; Que ele reside na cidade de São Paulo; Que, o motivo das ameaças vem pelo fato de uma dívida de cinquenta mil reais que ficou faltando ser paga, pela parte dele na firma Here Control Teleinformática Ltda. Que ciente dos termos dos artigos 88 e 91 da lei 9.099/95, vem representar pela instauração de ação penal contra Carlos Henrique Ferrari […]”, destaca o Termo Circunstanciado registrado na 93ª DP.  

Sair da versão mobile