Profissionais da Saúde iniciam carreira na linha de frente da pandemia

Com 342 escolas de medicina, o Brasil tem um dos maiores índices de médicos recém-formados por habitantes do mundo – são 10,4 recém-formados para cada grupo de 100 mil brasileiros. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), o país está à frente da França, dos Estados Unidos, de Israel, entre outros países.

O chamado Censo Demográfico Médico, lançado no final do ano passado, mostrou ainda que em 2020, em meio à pandemia, o país atingiu a marca de meio milhão de médicos. Muitos saíram das universidades para a linha de frente do combate à Covid-19. Só em 2020 foram cerca de 24 mil médicos chegando ao mercado de trabalho.

Esses recém-formados começaram a vida numa guerra, muitas vezes trabalhando em condições não preconizadas, ou seja, com o excesso de doentes, a falta de insumos e falta de vagas. É um grande desafio, e como isso vai afetar a carreira deles depende de cada um – diz Donizette Giamberardino, vice-presidente do CFM.

– É uma situação muito difícil, não é o que um médico deseja para si, mas, nesse momento, é uma tragédia de tal ordem, que é preciso fazer o que é possível.

A ida inesperada para o front logo após a formação acadêmica é também frequente entre enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem. Só no ano passado, foram 187.621 novos registros de profissionais – antes da pandemia, em 2019, o número era menor, e 176.383 profissionais tiveram seus registros emitidos para começar a trabalhar.

Para a presidente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), Betânia Maria Santos, a saída da universidade para o mercado de trabalho já é cercada de um alto nível de “ansiedade e insegurança e, naturalmente, esses níveis são maiores” quando o contexto é de uma crise sanitária sem precedentes na história recente.

– Temos que considerar que esses profissionais não terminaram o curso como anteriormente. A pandemia impediu muitas vivências. Vamos ter que oferecer suporte técnico, científico e emocional a eles – diz Santos, que também é professora na Universidade Federal da Paraíba.

– A universidade foi pega de surpresa, como todos. Não teve a possibilidade de oferecer o preparo mínimo para o enfermeiro que vai cuidar da vida das pessoas. Como essa experiência de combate entrou na vida desses jovens profissionais será um processo individual e coletivo.

Podem ter perdido familiares, podem ter se contaminado pelo vírus, enfim, cada um vai sair do jeito que der para sair, dependendo do que viveu e dos recursos emocionais de que dispunha.

Bem como médicos e enfermeiros, há também os dentistas que iniciaram suas carreiras nas UTI’s de Covid em serviços públicos de saúde, cuidando da boca de pacientes intubados. Chefe da Odontologia do Hospital São Paulo, ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Denise Abranches lidera residentes que atendem em unidades intensivas dedicadas apenas a pessoas com Covid.

Como a área de residência é uma escolha do recém-formado, ela avalia como heroica a decisão dos profissionais de trabalhar direto na linha de frente.

– Todos os meus residentes são jovens e, assim como os médicos, eles fazem prova e escolhem lutar no front. Eles vêm direto para o que costumo chamar de área onde os fracos não têm vez. – diz Abranches. – Eu os vejo como soldados que saltam de pára-quedas no meio da guerra. É um ato de coragem e bravura que vai marcar esses jovens profissionais de saúde para sempre. Eles serão os médicos, dentistas e enfermeiros da geração Covid.

Conheça abaixo a história de três jovens profissionais da saúde, que começaram a carreira em meio à pandemia.

Maria Eduarda Rolim, 24 anos

Maria Eduarda Rolim, de 24 anos, fez o juramento da formatura na sala de casa Foto: Arquivo pessoal

Em julho do ano passado, Maria Eduarda Rolim fez o juramento de Hipócrates na sala de casa. O texto solene em que médicos prometem respeitar valores da profissão seria lido na formatura, cancelada pela pandemia. O vestido longo verde de pedrarias que ela havia comprado para a festa ficou no armário e, como diz, foi substituído por avental, touca, luva, máscara n95 e acetato – “a paramentação foi a primeira peça que vesti como médica”, brinca.

Em julho do ano passado, Maria Eduarda Rolim fez o juramento de Hipócrates na sala de casa. O texto solene em que médicos prometem respeitar valores da profissão seria lido na formatura, cancelada pela pandemia. O vestido longo verde de pedrarias que ela havia comprado para a festa ficou no armário e, como diz, foi substituído por avental, touca, luva, máscara n95 e acetato – “a paramentação foi a primeira peça que vesti como médica”, brinca.

Aos 24 anos, recém-formada pela Unime, universidade particular em Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, ela decidiu adiar o sonho de fazer residência em pediatria para se candidatar a uma vaga na unidade básica de saúde do município baiano de Petrolina, onde mora. Lá, de 8h às 17h, atende casos de Covid-19 e encaminha pacientes para outras unidades. Nos finais de semana, trabalha em hospitais privados – precisa juntar dinheiro para pagar o Fies, o financiamento estudantil que lhe permitiu cursar medicina, mas que, agora, faz com que comece a carreira com uma dívida de quase meio milhão de reais.

– Jamais poderia imaginar que minha primeira carimbada como médica seria em meio ao caos. É um cenário apavorante. É horrível ver a unidade todos os dias lotada, ver gestante misturada com idoso e paciente com sintoma gripal. E o EPI cansa, não posso comer, não posso fazer xixi, isso por horas a fio – diz Rolim. – Mas eu sentia vontade de fazer a minha parte e tem uma gratificação muito grande sentir que a gente pode mudar o destino de uma pessoa.

Fernanda Cristina de Almeida, 23 anos

Fernanda Cristina de Almeida, de 23 anos, é dentista residente numa UTI no Hospital São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Quando começou a cursar Odontologia na Unicap, Fernanda Cristina de Almeida, de 23 anos, já pensava em trabalhar em hospital. Sua avó era enfermeira, e o ambiente hospitalar lhe agradava. Decidiu logo que trabalharia como dentista na UTI, mas “não podia sonhar que começaria numa pandemia”, algo que, ela completa, funcionou como “mais um motivo” para escolher um hospital. Desde março, ela percorre as UTI’s de Covid do Hospital São Paulo acompanhada de outros residentes e da dentista chefe da instituição.

No começo, ela conta que sentia medo de voltar para casa. Morando num hotel vizinho ao hospital, a dentista leva as roupas para lavar na casa dos pais, no interior de São Paulo, todo final de semana. O medo era “terrível, mas a consciência de que nosso trabalho ajuda o paciente é maior”. O encontro com a morte passou a ser diário.

– Já perdi muitos pacientes, e sempre é um baque. Mesmo que a gente se acostume, não podemos normalizar. Não é uma relação de frieza. Chego em casa à noite e choro – diz a dentista, cuja função consiste, por exemplo, em curar feridas nos lábios de pessoas intubadas, remover próteses e fazer a higiene bucal para evitar que o paciente sofra com outras infecções.

Pelo trabalho (são 60 horas por semana), ela recebe pouco mais de R$ 3.000, valor da bolsa paga a residentes.

– Tem sido um choque de realidade. De longe, eu não tinha dimensão de como as pessoas morrem, de como elas sofrem antes de morrer. É algo que vou carregar para sempre.

Márcio Aparecido dos Santos Júnior, 22 anos

Márcio Júnior trabalha na UTI do Hospital Vereador José Storopolli Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Enfermagem, no final de 2019, Márcio Aparecido dos Santos Júnior, de 22 anos, começou a procurar trabalho. Percebeu que as oportunidades haviam aumentado com o início da pandemia, em março de 2020. Aplicou-se para várias vagas até que, em junho, foi aprovado para trabalhar no Hospital Municipal Vereador José Storopolli, conhecido como Vermelhinho, em São Paulo. Começou mesmo a atender em outubro de 2020, com a pandemia já avançada no país.

– Eu tinha saído da faculdade sem preparo para isso, porque era de fato algo inédito. Não tinha literatura, não tinha protocolo, e fomos aprendendo na raça como tratar os pacientes. Quando cheguei, já havia profissionais com alguma experiência para guiar, mas todos aprenderam enquanto trabalhavam – lembra o enfermeiro.

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À noite, em casa, antes de dormir, ele passou a escutar os sons dos monitores e dos equipamentos da UTI. Voltam também as memórias do dia e, quando o sono vem, são as cenas do hospital que povoam os sonhos.

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– Comecei a ver muitos óbitos. Dois por dia, pelo menos. E isso mexe com o emocional da gente. Muitas vezes, somos o último contato que o paciente tem. A gente vira a família deles ali dentro – conta o enfermeiro. – Às vezes, você está conversando com o paciente num dia e, no dia seguinte, tem que intubar. Quando começa a sedação, o paciente pede para não ser intubado. Aqueles olhos de socorro, não tem como descrever. Aquilo vai ficar gravado em mim para sempre.

As informações são de O Globo.

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